sexta-feira, 11 de julho de 2025

O Anonimato na Propaganda Eleitoral Digital: Vedação Normativa, Paradoxo Jurídico e Perspectivas de Reformulação

 

* Alexandre Basílio Coura[1]

 

 


 

Introdução

A crescente digitalização das interações sociopolíticas e das campanhas eleitorais ampliou significativamente os desafios enfrentados pelo Direito Eleitoral no que diz respeito à responsabilização por manifestações anônimas, notadamente aquelas que veiculam propaganda eleitoral ou disseminam desinformação. Diante desse cenário, o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu, de forma categórica, a vedação ao anonimato na propaganda eleitoral digital, impondo a obrigatoriedade de identificação do responsável pelo conteúdo durante o período de campanha.

 

2. Fundamento Normativo e Limites da Identificação

 

A Resolução TSE nº 23.610/2019, que disciplina a propaganda eleitoral, estabelece em seu artigo 30 que “é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da internet [...] e por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica e mensagem instantânea”. Tal dispositivo reflete a aderência do Direito Eleitoral ao princípio republicano da transparência, essencial à responsabilização por condutas no debate público.

O descumprimento dessa norma enseja a imposição de sanção pecuniária, nos termos do §1º do referido artigo, que prevê multa entre R$ 5.000,00 e R$ 30.000,00 ao autor da propaganda anônima, bem como ao seu beneficiário, desde que comprovado o prévio conhecimento. A responsabilização, contudo, não alcança os provedores de aplicação, salvo nos casos de descumprimento de determinação judicial (§1º-A).

 

3. A Paradoxa Estrutura da Sanção por Anonimato

 

A regulamentação apresenta, entretanto, um problema estrutural. Para que a sanção seja aplicada, é imprescindível que se demonstre a impossibilidade de identificação do autor do conteúdo — condição que, paradoxalmente, depende da superação do anonimato para que a multa tenha um destinatário conhecido e possa ser aplicada. Traduzindo em miúdos, só se permite aplicar a multa quando o responsável pelo ilícito for desconhecido.

Deve-se ainda considerar que o § 2º do artigo 38 da Resolução dispõe que “a ausência de identificação imediata do usuário responsável pela divulgação do conteúdo não constitui circunstância suficiente para o deferimento liminar do pedido de quebra de sigilo de dados”.

Portanto, ainda que o anonimato seja vedado, sua mera constatação não autoriza a mitigação da privacidade digital, impondo-se a observância dos critérios previstos no artigo 40 da Resolução. Assim, são requisitos para a formulação válida do pedido judicial de quebra de sigilo de dados:

I - existência de indícios consistentes da prática de ilícito eleitoral;

II - demonstração motivada da utilidade dos dados requeridos;

III- delimitação temporal dos registros pretendidos.

O §3º do artigo 38 complementa essa lógica, ao estabelecer que a publicação apenas será considerada anônima se restar infrutífera a adoção das medidas de identificação previstas no artigo 40. Trata-se, portanto, de uma anomia prática: o anonimato é vedado, mas a responsabilização exige que se prove sua ocorrência concreta, sob pena de medidas que só podem ser aplicadas no fracasso da empreitada, tornando impossível a própria punição.

Essa estrutura cria um impasse: a sanção prevista no §2º do art. 57-D da Lei nº 9.504/1997 pode ser juridicamente cabível, mas, na ausência de um sujeito identificado, torna-se inexequível. Esse vácuo de aplicabilidade enfraquece tanto a função dissuasória quanto a educativa da norma, comprometendo a eficácia do sistema sancionador e fomentando uma percepção de impunidade no ambiente digital eleitoral.

Nesses casos, resta ao judiciário, uma vez que desconhecido o autor do ilícito, determinar ao provedor de aplicação a suspensão da conta ou a simples remoção do conteúdo considerado irregular, medida inerte, pois, segundos depois haverá novo canal ou nova publicação ostentando as mesmas irregularidades, objetivando turbar o pleito e mantendo-se impune em razão da ausência de racionalidade normativa.

 

4. Proposta de Aperfeiçoamento Regulatório

 

Para superar esse déficit normativo-operacional, propõe-se a adoção de mecanismo de identificação mínima prévia. Uma alternativa viável consistiria na obrigatoriedade de que todo usuário que deseje se manifestar publicamente sobre temáticas políticas mantenha vinculado ao seu perfil um endereço eletrônico público para intimação judicial. A ausência dessa informação, ou o não atendimento a comunicações judiciais dirigidas a esse canal, configuraria presunção qualificada de anonimato, legitimando a remoção do conteúdo ilícito ou até suspensão do perfil em alguns casos, até que a identificação fosse viabilizada.

 

Tal exigência não se afastaria dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), na medida em que o tratamento da informação se daria de forma proporcional, com finalidade legítima, adequação à finalidade eleitoral e observância do devido processo legal, possibilitando até mesmo o uso de pseudônimos no endereço de e-mail, desde que reconhecido pelo usuário como canal oficial para intimações nesses casos.  

 

5. Conclusão

 

A vedação ao anonimato na propaganda eleitoral digital constitui instrumento essencial à proteção da integridade do pleito e à responsabilização de condutas no espaço público virtual. Contudo, a eficácia dessa norma depende da superação de entraves estruturais e probatórios que inviabilizam sua aplicação prática.

A introdução de mecanismos mínimos de identificação — como o e-mail público vinculado ao perfil — permitiria compatibilizar a liberdade de expressão com a responsabilização jurídica, promovendo um ambiente eleitoral digital mais transparente, seguro e coerente com os valores democráticos constitucionais.

Tal proposta de solução pela arquitetura deveria, inclusive, integrar as futuras discussões legislativas sobre a reforma do Código Eleitoral, com imposição de implementação aos provedores de aplicações,  conferindo maior densidade normativa ao enfrentamento das práticas anônimas ilícitas no espaço digital, hoje concentradas apenas em responsabilizar as big techs ou remover individualmente os ilícitos.



[1]     Alexandre Basílio Coura é palestrante, professor e pesquisador de Direito Digital e Eleitoral em várias universidades em cursos de pós-graduação. Graduado em Direito, em Ciência Política e em Redes de Computadores. Atualmente cursa um mestrado na Universidade de Lisboa e conclui uma graduação em engenharia de computadores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário