* Alexandre Basílio Coura[1]
Introdução
A
crescente digitalização das interações sociopolíticas e das campanhas
eleitorais ampliou significativamente os desafios enfrentados pelo Direito
Eleitoral no que diz respeito à responsabilização por manifestações anônimas,
notadamente aquelas que veiculam propaganda eleitoral ou disseminam
desinformação. Diante desse cenário, o ordenamento jurídico brasileiro
estabeleceu, de forma categórica, a vedação ao anonimato na propaganda
eleitoral digital, impondo a obrigatoriedade de identificação do responsável pelo
conteúdo durante o período de campanha.
2. Fundamento
Normativo e Limites da Identificação
A
Resolução TSE nº 23.610/2019, que disciplina a propaganda eleitoral, estabelece
em seu artigo 30 que “é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato
durante a campanha eleitoral, por meio da internet [...] e por outros meios de
comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica e mensagem instantânea”.
Tal dispositivo reflete a aderência do Direito Eleitoral ao princípio
republicano da transparência, essencial à responsabilização por condutas no
debate público.
O
descumprimento dessa norma enseja a imposição de sanção pecuniária, nos termos
do §1º do referido artigo, que prevê multa entre R$ 5.000,00 e R$ 30.000,00 ao
autor da propaganda anônima, bem como ao seu beneficiário, desde que comprovado
o prévio conhecimento. A responsabilização, contudo, não alcança os provedores
de aplicação, salvo nos casos de descumprimento de determinação judicial
(§1º-A).
3. A Paradoxa
Estrutura da Sanção por Anonimato
A
regulamentação apresenta, entretanto, um problema estrutural. Para que a sanção
seja aplicada, é imprescindível que se demonstre a impossibilidade de
identificação do autor do conteúdo — condição que, paradoxalmente, depende da
superação do anonimato para que a multa tenha um destinatário conhecido e possa
ser aplicada. Traduzindo em miúdos, só se permite aplicar a multa quando o
responsável pelo ilícito for desconhecido.
Deve-se
ainda considerar que o § 2º do artigo 38 da Resolução dispõe que “a ausência de
identificação imediata do usuário responsável pela divulgação do conteúdo não
constitui circunstância suficiente para o deferimento liminar do pedido de
quebra de sigilo de dados”.
Portanto,
ainda que o anonimato seja vedado, sua mera constatação não autoriza a
mitigação da privacidade digital, impondo-se a observância dos critérios
previstos no artigo 40 da Resolução. Assim, são requisitos para a formulação
válida do pedido judicial de quebra de sigilo de dados:
I
- existência de indícios consistentes da prática de ilícito eleitoral;
II
- demonstração motivada da utilidade dos dados requeridos;
III-
delimitação temporal dos registros pretendidos.
O
§3º do artigo 38 complementa essa lógica, ao estabelecer que a publicação
apenas será considerada anônima se restar infrutífera a adoção das medidas de
identificação previstas no artigo 40. Trata-se, portanto, de uma anomia
prática: o anonimato é vedado, mas a responsabilização exige que se prove sua
ocorrência concreta, sob pena de medidas que só podem ser aplicadas no fracasso
da empreitada, tornando impossível a própria punição.
Essa
estrutura cria um impasse: a sanção prevista no §2º do art. 57-D da Lei nº
9.504/1997 pode ser juridicamente cabível, mas, na ausência de um sujeito
identificado, torna-se inexequível. Esse vácuo de aplicabilidade enfraquece
tanto a função dissuasória quanto a educativa da norma, comprometendo a
eficácia do sistema sancionador e fomentando uma percepção de impunidade no
ambiente digital eleitoral.
Nesses
casos, resta ao judiciário, uma vez que desconhecido o autor do ilícito,
determinar ao provedor de aplicação a suspensão da conta ou a simples remoção
do conteúdo considerado irregular, medida inerte, pois, segundos depois haverá
novo canal ou nova publicação ostentando as mesmas irregularidades, objetivando
turbar o pleito e mantendo-se impune em razão da ausência de racionalidade
normativa.
4. Proposta
de Aperfeiçoamento Regulatório
Para
superar esse déficit normativo-operacional, propõe-se a adoção de mecanismo de
identificação mínima prévia. Uma alternativa viável consistiria na
obrigatoriedade de que todo usuário que deseje se manifestar publicamente sobre
temáticas políticas mantenha vinculado ao seu perfil um endereço eletrônico
público para intimação judicial. A ausência dessa informação, ou o não
atendimento a comunicações judiciais dirigidas a esse canal, configuraria
presunção qualificada de anonimato, legitimando a remoção do conteúdo ilícito
ou até suspensão do perfil em alguns casos, até que a identificação fosse
viabilizada.
Tal
exigência não se afastaria dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados
(Lei nº 13.709/2018), na medida em que o tratamento da informação se daria de
forma proporcional, com finalidade legítima, adequação à finalidade eleitoral e
observância do devido processo legal, possibilitando até mesmo o uso de
pseudônimos no endereço de e-mail, desde que reconhecido pelo usuário como
canal oficial para intimações nesses casos.
5. Conclusão
A
vedação ao anonimato na propaganda eleitoral digital constitui instrumento
essencial à proteção da integridade do pleito e à responsabilização de condutas
no espaço público virtual. Contudo, a eficácia dessa norma depende da superação
de entraves estruturais e probatórios que inviabilizam sua aplicação prática.
A
introdução de mecanismos mínimos de identificação — como o e-mail público
vinculado ao perfil — permitiria compatibilizar a liberdade de expressão com a
responsabilização jurídica, promovendo um ambiente eleitoral digital mais
transparente, seguro e coerente com os valores democráticos constitucionais.
Tal
proposta de solução pela arquitetura deveria, inclusive, integrar as futuras
discussões legislativas sobre a reforma do Código Eleitoral, com imposição de
implementação aos provedores de aplicações,
conferindo maior densidade normativa ao enfrentamento das práticas
anônimas ilícitas no espaço digital, hoje concentradas apenas em responsabilizar
as big techs ou remover individualmente os ilícitos.
[1] Alexandre Basílio Coura é palestrante,
professor e pesquisador de Direito Digital e Eleitoral em várias universidades
em cursos de pós-graduação. Graduado em Direito, em Ciência Política e em Redes
de Computadores. Atualmente cursa um mestrado na Universidade de Lisboa e
conclui uma graduação em engenharia de computadores.
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