sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Da etiqueta ao veto: onde o 9-B encontra o 9-C. IA Generativa ou DeepFake?

 


 


O termo “deepfake” nasceu em 2017 dentro de comunidades de pornografia no Reddit, rotulando vídeos em que rostos eram trocados por meio de redes neurais para simular cenas explícitas com pessoas famosas. O rótulo carregou esse contexto de exploração sexual e, por isso, é desaconselhável como categoria jurídica ampla: além da carga semântica problemática, ele passou a ser usado, de forma atécnica, como guarda-chuva para qualquer mídia sintética, confundindo manipulações sobre material pré-existente com criações inéditas de IA generativa. Essa imprecisão gera insegurança na aplicação de regras eleitorais e embaralha o que deve ser proibido de maneira absoluta e o que pode ser permitido com transparência.

Mesma tecnologia, regras diversas.

Do lado da IA generativa, as ferramentas atuais (texto-para-imagem, texto-para-vídeo e clonagem de voz) conseguem produzir conteúdos totalmente novos sem depender de um vídeo base. Tecnicamente, diferem dos “deepfakes” clássicos de face swap treinados sobre acervos da pessoa-alvo. Porém, como o vocabulário regulatório deu nomes diversos a conteúdos que podem ser gerados a partir da mesma tecnologia, bem como misturou “fabricado” e “manipulado” para designar tanto desinformação quanto usos lícitos com transparência, o direito ficou com categorias embaralhadas: o mesmo termo ora descreve fraude, ora descreve criação legítima assistida por IA, mas no fundo, atualmente tudo isso pode ser feito a partir da mesma tecnologia, o que exige atualização da legislação e das resoluções eleitorais.

Questões pontuais que devem ser melhoradas.

O art. 9-B permite o uso de IA para criar, substituir, mesclar, omitir ou sobrepor imagens e sons na propaganda, exigindo aviso “explícito, destacado e acessível” de que houve uso de tecnologia. Os principais problemas aqui são: (i) terminologia confusa — ao exigir que se informe que o conteúdo foi “fabricado ou manipulado”, a redação associa usos legítimos às mesmas palavras consagradas internacionalmente para desinformação; (ii) delimitação técnica imprecisa — o dispositivo se aplica apenas quando há IA generativa, deixando fora intervenções tradicionais (edição 3D, pós-produção sem IA) que podem produzir efeitos persuasivos semelhantes; (iii) ônus probatório prático — disputas processuais tenderão a girar sobre “houve IA ou não?”, deslocando o foco do impacto e da veracidade para a ferramenta; (iv) incidência temporal nebulosa — como a Resolução estende deveres de transparência também à pré-campanha (art. 3º-C), falta um marco objetivo para definir quando começam as obrigações, o que amplifica o risco de decisões casuísticas.

Mesmos verbos, mesma tecnologia, consequências e usos distintos.

O art. 9-C, por sua vez, veda conteúdos “fabricados ou manipulados” com potencial de dano ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo e, no §1º, proíbe de modo absoluto o uso de “deepfakes” para criar, substituir ou alterar imagem/voz — inclusive com autorização e até quando a pessoa for fictícia. Os principais pontos críticos são: (i) critério de gravidade subjetivo — “potencial para causar danos” carece de indicadores objetivos (alcance, métricas de difusão, contexto) e convida a decisões divergentes; (ii) redundância conceitual — a redação mistura “conteúdo sintético”, “gerado ou manipulado digitalmente” e “deepfake”, sem critérios técnicos para separar manipulação desinformativa de criação transparente; (iii) choque com o art. 9-B — os mesmos verbos (criar, substituir, alterar) aparecem como permitidos com transparência (9-B) e proibidos (9-C §1º) quando classificados como “deepfake”, mas a norma não oferece um teste operacional para distingui-los; (iv) abrangência excessiva — a proibição vale “ainda que mediante autorização”, o que alcança avatares, dublagens e clones de candidatos usados para reduzir custos e ampliar acessibilidade, mesmo sem intuito enganoso.

Regulação confusa  - Duplipensar

O resultado prático dessa dupla engrenagem é um trilema regulatório: a) 9-B autoriza IA com transparência; b) 9-C caput proíbe desinformação “fabricada ou manipulada” pela gravidade do efeito; c) 9-C §1º proíbe, per se, “deepfake”. Sem um critério técnico verificável — por exemplo, “partiu de material pré-existente identificável para simular identidade alheia” (deepfake clássico) versus “sintetizou conteúdo inédito sem copiar identidade específica” (IA generativa) —, a aplicação oscila e desencoraja usos lícitos que poderiam democratizar a comunicação política, ao mesmo tempo em que nem sempre atinge com precisão as falsificações nocivas.

De um lado pode-se tudo, desde que haja transparência e esteja ausente qualquer desinformação. De outro, tudo é proibido, ainda que para o bem, ainda que com autorização dos envolvidos. Contudo, trata-se da mesma tecnologia, conforme dito ad nauseam, o que abre espaço para que em qualquer caso, a depender dos interesses de cada lado, seja feito um self-service de dispositivos na defesa de sua tese.

Possibilidade de solução.

Uma saída interpretativa minimamente segura é:

(1) classificar como deepfake proibida (9-C §1º) a manipulação que reutiliza material pré-existente identificável para simular identidade/voz de pessoa real para o bem ou para o mal, ainda que sob outra denominação. Isso porque, o próprio autor que aparece em um vídeo produzido anteriormente não precisa se valer de qualquer tecnologia para alterar características de conteúdo anterior, bastando gravar novo vídeo. Terceiros não devem, para o bem ou para o mal, ter o direito de alterar vídeo existente do qual não fazem parte, modificando a realidade dos fatos, em nenhuma hipótese.

(2) tratar como IA generativa permitida com transparência (9-B) a criação inédita que não se ancora em material pessoal prévio nem simula identidade específica; O sujeito detentor dos direitos sobre sua própria imagem, pode usar IA generativa para produzir os mais variados materiais de campanha, desde que respeitem a regra sobre “não desinformar com intuito de obter benefícios eleitorais”.

(3) enquadrar como desinformação vedada (9-C caput) qualquer uso — com ou sem IA — que produza fato falso ou gravemente descontextualizado com relevância eleitoral mensurável. Isso aproximaria a norma de critérios objetivos (fonte de dados, processo de criação, finalidade e impacto), reduziria litígios sobre a “ferramenta” e recolocaria o foco em veracidade, contexto e gravidade.

Conclusão

Em síntese, é indispensável atualizar a redação dos dispositivos para refletir a evolução tecnológica: a IA generativa passou a realizar, sem vídeo base, o que antes era típico das deepfakes, tornando insuficiente a dicotomia atual. Ajustes terminológicos (substituir “fabricado/manipulado” por “criado/editado com IA” quando lícito), critérios técnicos de distinção e indicadores objetivos de dano podem preservar a integridade do pleito sem sufocar inovações legítimas, garantindo previsibilidade para candidatos, partidos, plataformas e Judiciário.


Artigo que faz parte do Livro: Direito Digital e Inteligência Artificial nas campanhas  eleitorais contemporâneas. 

Autor: Alexandre Basílio. 

 

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O Poder de Polícia no Contexto Eleitoral: Evolução Histórica, Limites Atuais e Aplicação Prática



Alexandre Basilio

Mestrando em Ciência Política, professor de Direito Digital e Direito Eleitoral. Pesquisador em Democracia e Tecnologia.





 


1. Introdução

O Poder de Polícia é uma das prerrogativas mais relevantes da Administração Pública, permitindo-lhe impor limites e condições ao exercício de direitos individuais em prol do interesse público. No âmbito eleitoral, sua função está diretamente relacionada à preservação da lisura do processo eleitoral e ao equilíbrio entre a liberdade de expressão e a coibição de ilícitos. Contudo, a sua compreensão exige uma análise histórica que remonta ao período autoritário, perpassa a redemocratização e chega ao cenário contemporâneo, em que as novas tecnologias e a comunicação digital impõem desafios inéditos.

A presente análise parte do conceito amplo e centralizador presente no Código Tributário Nacional, passa pela disciplina do Código Eleitoral, examina as restrições impostas pela Lei nº 9.504/1997 e culmina na regulamentação da Resolução nº 23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com menção à Resolução nº 23.714/2022. O objetivo é fornecer uma visão técnica, didática e sistemática, destinada a juristas, magistrados, membros do Ministério Público, advogados e acadêmicos, sobre a evolução e aplicação do Poder de Polícia no contexto eleitoral.

 

2. Origem e conceito no Código Tributário Nacional (1966)

O art. 78 do Código Tributário Nacional, com redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 1966, estabelece que “considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.

O parágrafo único dispõe que se considera regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do devido processo legal e, tratando-se de atividade discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

LEI Nº 5.172, DE 25 DE OUTUBRO DE 1966. Código Tributário Nacional.

 Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 1966)

        Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.

Esse conceito, elaborado durante o regime militar, confere à Administração Pública um poder de intervenção amplo, legitimando a limitação de direitos individuais por uma variedade extensa de motivos, todos vinculados a interesses públicos genéricos. A norma reflete a concepção centralizadora do Estado naquele período, permitindo-lhe intervir diretamente em atividades e condutas privadas, desde que formalmente amparado pela lei e pela competência administrativa.

 

3. O Código Eleitoral e o art. 249 (1965)

O art. 249 do Código Eleitoral, promulgado em 1965, dispõe que “o direito de propaganda não importa restrição ao poder de polícia quando este deva ser exercido em benefício da ordem pública”.

LEI Nº 4.737, DE 15 DE JULHO DE 1965.

Art. 249. O direito de propaganda não importa restrição ao poder de polícia quando este deva ser exercido em benefício da ordem pública.

A regra revela que, mesmo assegurado o direito de propaganda, a Administração Eleitoral mantinha ampla prerrogativa para intervir, sob o argumento da preservação da ordem pública. O conceito de “ordem pública”, de contornos amplos e imprecisos, possibilitava a suspensão ou limitação de manifestações eleitorais sempre que consideradas potencialmente perturbadoras, mantendo o espírito de forte intervenção estatal característico do período pré-1988.

 

4. A Lei nº 9.504/1997 e a redução dos limites do Poder de Polícia

A promulgação da Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova perspectiva para os direitos e garantias individuais, repercutindo diretamente no âmbito eleitoral. A Lei nº 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições, promoveu uma drástica redução no alcance do Poder de Polícia.

O art. 41 da Lei estabelece que a propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do Poder de Polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40. Observa-se aqui um erro material, pois a remissão lógica deveria ser ao art. 40-B, que trata especificamente das representações eleitorais para remoção de propagandas  e aplicação de multas eleitorais. 

Art. 41.  A propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40.   

Art. 40. O uso, na propaganda eleitoral, de símbolos, frases ou imagens, associadas ou semelhantes às empregadas por órgão de governo, empresa pública ou sociedade de economia mista constitui crime, punível com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de dez mil a vinte mil UFIR.

Art. 40-B.  A representação relativa à propaganda irregular deve ser instruída com prova da autoria ou do prévio conhecimento do beneficiário, caso este não seja por ela responsável

O § 1º do referido dispositivo atribui o exercício do Poder de Polícia sobre propaganda eleitoral aos juízes eleitorais e aos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais. Já o § 2º limita tal poder às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedando expressamente a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.

§ 1º.  O poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos Tribunais Regionais Eleitorais.

§ 2º.  O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.  

 Esse novo modelo jurídico traduz a intenção de restringir o Poder de Polícia a hipóteses de flagrante ilegalidade, afastando intervenções arbitrárias e resguardando a liberdade de expressão no debate eleitoral. Para todas as demais situações, deve-se haver uma representação proposta pelo Ministério Público ou pelos demais legitimados.

 

5. Resolução TSE nº 23.610/2019 e a consolidação normativa

A Resolução nº 23.610/2019 do TSE regulamenta a propaganda eleitoral e reafirma as balizas da Lei nº 9.504/1997.

5.1 Poder de Polícia de rua (art. 6º e 8º)

O art. 6º e seus parágrafos repetem a regra de que a propaganda nos termos da lei não pode ser restringida pelo Poder de Polícia, salvo nas hipóteses de flagrante ilegalidade. Esclarece, ainda, que o poder de polícia é próprio dos juízes eleitorais, zonais ou designados pelos tribunais regionais eleitorais, sem qualquer menção ao poder de polícia dos ministros do TSE.

Conforme preleciona o parágrafo 3º, vale lembrar que não se pode aplicar multas em poder de polícia, o que foi confirmado pela Súmula 18 do TSE. A única medida possível, em tese, é o crime de desobediência, sendo as multas aplicáveis apenas após a representação eleitoral proposta pelo MP.

Art. 6º A propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40 da Lei nº 9.504/1997 (Lei nº 9.504/1997, art. 41, caput) .

§ 1º O poder de polícia sobre a propaganda eleitoral será exercido juízas ou juízes designadas(os) pelos tribunais regionais eleitorais, nos termos do art. 41, § 1º, da Lei nº 9.504/1997 , observado ainda, quanto à internet, o disposto no art. 8º desta Resolução.

§ 2º O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas e das matérias jornalísticas a serem exibidos na televisão, na rádio, na internet e na imprensa escrita (Lei nº 9.504/1997, art. 41, § 2º).

§ 3º No caso de condutas sujeitas a penalidades, a autoridade eleitoral delas cientificará o Ministério Público, para os fins previstos nesta Resolução.

Súmula 18 do TSE: Conquanto investido de poder de polícia, não tem legitimidade o juiz eleitoral para, de ofício, instaurar procedimento com a finalidade de impor multa pela veiculação de propaganda eleitoral em desacordo com a Lei nº 9.504/1997.

 

O art. 8º define a competência para o exercício de poder de polícia na internet, determinando que a sua execução deve ser operacionalizada no local em que o registro de candidatura das pessoas envolvidas será julgado, contrariando, em razão da ubiquidade das propagandas na internet, a ideia de um poder limitado territorialmente quanto apenas ao local dos fatos, conforme ocorre no exercício do poder de polícia sobre as propagandas de rua.

Art. 8º Para assegurar a unidade e a isonomia no exercício do poder de polícia na internet, este deverá ser exercido:

I - nas eleições gerais, por uma(um) ou mais juízas ou juízes designadas(os) pelo tribunal eleitoral competente para o exame do registro da candidata ou do candidato alcançado pela propaganda;

II - nas eleições municipais, pela juíza ou pelo juiz que exerce a jurisdição eleitoral no município e, naqueles com mais de uma zona eleitoral, pelas juízas eleitorais e pelos juízes eleitorais designadas(os) pelos respectivos tribunais regionais eleitorais.

 

5.2 Poder de Polícia na internet quanto aos meios e formas de divulgação (art. 7º)

A Resolução é expressa: na internet, o Poder de Polícia só pode recair sobre a forma e o meio de veiculação (ex.: ausência de identificação obrigatória, impulsionamento irregular, violação de regras técnicas). O teor (conteúdo) da propaganda não pode ser objeto de intervenção administrativa direta, devendo eventual irregularidade ser encaminhada ao Ministério Público Eleitoral para representação judicial.

Quando a norma faz essa menção, também deixa claro que está tratando de ilícitos eleitorais ligados à propaganda eleitoral específica, ou seja, aquela que disponha sobre candidaturas, candidatos, partidos e sobre o contexto geral da disputa, sem limitar, portanto, a atuação da Justiça Eleitoral contra conteúdos que digam respeito à confiabilidade da Justiça Eleitoral e dos resultados do pleito, conforme , § 3º do dispositivo aqui mencionado e artigo 9-F desta mesma resolução.

Art. 7º O juízo eleitoral com atribuições fixadas na forma do art. 8º desta Resolução somente poderá determinar a imediata retirada de conteúdo na internet que, em sua forma ou meio de veiculação, esteja em desacordo com o disposto nesta Resolução.

§ 1º Caso a irregularidade constatada na internet se refira ao teor da propaganda, não será admitido o exercício do poder de polícia, nos termos do art. 19 da Lei nº 12.965/2014 ;

§ 2º Na hipótese prevista no § 1º deste artigo, eventual notícia de irregularidade deverá ser encaminhada ao Ministério Público Eleitoral.

§ 3º O disposto neste artigo se refere ao poder de polícia sobre propaganda eleitoral específica, relacionada às candidaturas e ao contexto da disputa, mantida a competência judicial para a adoção de medidas necessárias para assegurar a eficácia das decisões do Tribunal Superior Eleitoral, na forma do art. 9º-F desta Resolução. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

Art. 9º-F. No caso de a propaganda eleitoral na internet veicular fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados sobre o sistema eletrônico de votação, o processo eleitoral ou a Justiça Eleitoral, as juízas e os juízes mencionados no art. 8º desta Resolução ficarão vinculados, no exercício do poder de polícia e nas representações, às decisões colegiadas do Tribunal Superior Eleitoral sobre a mesma matéria, nas quais tenha sido determinada a remoção ou a manutenção de conteúdos idênticos. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

 

6. Conteúdo desvinculado de candidatos e partidos: desinformação sobre o processo eleitoral

Quando o conteúdo não envolve propaganda eleitoral, mas veicula desinformação sobre o processo eleitoral, urnas eletrônicas ou sobre a Justiça Eleitoral, o procedimento admite a remoção administrativa do conteúdo considerado ilícito.

A revogação do art. 9-A da Resolução nº 23.610/2019 pela Resolução nº 23.714/2022 retirou a exigência de representação do Ministério Público para a adoção dessa medida, conferindo maior celeridade e confirmando a natureza administrativa ao processo de retirada de ofício de conteúdo eleitoral lato sensu considerado ilícito pela Justiça Eleitoral.

Art. 9º-A. É vedada a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos, devendo o juízo eleitoral, a requerimento do Ministério Público, determinar a cessação do ilícito, sem prejuízo da apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação. (Revogado pela Resolução nº 23.714/2022)

 

7. Resolução nº 23.714/2022: novos desafios e medidas sancionatórias

A Resolução nº 23.714/2022, validada pela ADI 7261, de relatoria do Ministro Edson Fachin, introduziu mecanismos mais diretos de combate à desinformação, mas sua redação apresenta termos vagos, como “conteúdo sabidamente inverídico” e “gravidade”, que dependem de valoração subjetiva.

 

EMENTA. DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO TSE Nº. 23.714/2022. ENFRENTAMENTO DA DESINFORMAÇÃO CAPAZ DE ATINGIR A INTEGRIDADE DO PROCESSO ELEITORAL. 1. Não se reveste de fumus boni iuris a alegação de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao exercer a sua atribuição de elaboração normativa e o poder de polícia em relação à propaganda eleitoral, usurpa a competência legislativa da União, porquanto a Justiça Especializada vem tratando da temática do combate à desinformação por meio de reiterados precedentes jurisprudenciais e atos normativos, editados ao longo dos últimos anos. 2. A Resolução TSE nº. 23.714/2022 não consiste em exercício de censura prévia. 3. A disseminação de notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral, pode ter a força de ocupar todo espaço público, restringindo a circulação de ideias e o livre exercício do direito à informação. 4. O fenômeno da desinformação veiculada por meio da internet, caso não fiscalizado pela autoridade eleitoral, tem o condão de restringir a formação livre e consciente da vontade do eleitor. 5. Ausentes elementos que, nesta fase processual, conduzam à decretação de inconstitucionalidade da norma impugnada, há que se adotar atitude de deferência em relação à competência do Tribunal Superior Eleitoral de organização e condução das eleições gerais. 6. Medida cautelar indeferida.

(ADI 7261 MC-Ref, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-237 DIVULG 22-11-2022 PUBLIC 23-11-2022)

A principal crítica à norma é que ela amplia o uso do poder de polícia para hipóteses antes condicionadas à atuação do Ministério Público, permitindo a remoção de conteúdo de ofício em situações descritas de forma abstrata, como no § 2º, que veda, nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos.

A utilização da expressão “inclusive” indica que a norma não se limita às hipóteses em que os resultados do pleito são colocados em xeque, permitindo interpretação extensiva para abarcar qualquer situação que se entenda como gravemente descontextualizada e capaz de afetar a integridade do processo eleitoral. Assim, embora possa parecer que o foco seja apenas a desinformação que coloque em dúvida o resultado do pleito, o termo deixa claro que a abrangência é mais ampla.

Art. 1º Esta Resolução dispõe sobre o enfrentamento à desinformação atentatória à integridade do processo eleitoral.

Art. 2º É vedada, nos termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, INCLUSIVE os processos de votação, apuração e totalização de votos.

 

7.1 - Medidas sancionatórias além da remoção de conteúdo.

Para além da retirada de conteúdo, a Resolução nº 23.714/2022 prevê um conjunto de medidas graduadas, dirigidas a provedoras(es) e usuárias(os), a depender da gravidade, do alcance e da reiteração do ilícito, tais como: (i) rotulagem, redução de alcance e desmonetização de conteúdos; (ii) desindexação e desativação de impulsionamento; (iii) suspensão temporária de perfis, páginas, canais e grupos; (iv) suspensão temporária de funcionalidades e de serviços da plataforma no Brasil em hipóteses de reiterado descumprimento; e (v) aplicação de multas diárias (astreintes) e comunicação ao Ministério Público para apuração de responsabilidades cíveis e penais.

 A arquitetura sancionatória evidencia que a norma ultrapassa a lógica meramente assecuratória da retirada de conteúdo, aproximando-se de um regime de polícia administrativa de alta intensidade, situações que podem ser realizadas de ofício, conforme convicção formada sobre o caso pelo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

A norma foi aplicada no pleito para o qual foi editada, mas estabelece precedentes relevantes para futuras regulamentações permanentes.

 

7.2 Delimitação penal e temporal do impulsionamento: a janela de 48h/24h

A Resolução nº 23.714/2022 enfrenta um dos seus principais desafios ao compatibilizar a vedação administrativa de veiculação paga com a tipicidade penal prevista na Lei nº 9.504/1997. O art. 6º da Resolução dispõe ser vedada “desde quarenta e oito horas antes até vinte e quatro horas depois da eleição” a veiculação paga, inclusive por monetização direta ou indireta, de propaganda eleitoral na internet (caput), prevendo (i) remoção imediata sob pena de multa horária de R$ 100.000,00 a R$ 150.000,00 (§ 1º) e (ii) a qualificação do descumprimento como gasto ilícito de recursos eleitorais, apto a ensejar desaprovação de contas, sem prejuízo da apuração do crime do art. 39, § 5º, IV, da Lei nº 9.504/1997 (§ 2º).

Ocorre que a moldura temporal administrativa (48h antes a 24h após) não se sobrepõe nem expande o alcance do tipo penal. À luz da legalidade estrita (nullum crimen, nulla poena sine lege), a incidência criminal do art. 39, § 5º, IV, alcança a conduta quando o impulsionamento ocorre no dia do pleito, enquanto o intervalo entre T–48h e T–24h permanece, por força da Resolução, na esfera administrativa-contábil (gasto ilícito e efeitos nas contas), sem que disso decorra, por si, tipicidade penal.

A cláusula “sem prejuízo” do § 2º, portanto, remete à verificação autônoma dos elementos do tipo penal — não autoriza ampliar, por ato normativo infralegal, a temporalidade do crime.

Do ponto de vista prático, emergem três frentes de controvérsia:

(a) Definição de “veiculação paga” e “monetização direta ou indireta”. A expressão abrange impulsionamento formal de anúncios (ads/boosts), posts patrocinados, conteúdos promovidos por terceiros com reembolso, redes de afiliados e formatos híbridos (por exemplo, “parcerias” que resultem em pagamento por alcance). A caracterização da onerosidade e o nexo com o beneficiário eleitoral são centrais para diferenciar propaganda paga de manifestações espontâneas.

(b) Temporalidade e execução automatizada. Situações recorrentes incluem: (i) campanhas programadas antes do marco temporal que seguem sendo entregues durante a vedação; (ii) carry-over algorítmico (impressões residuais após o suposto desligamento); (iii) diferenças de fuso horário e carimbo de data/hora do provedor; (iv) budget pacing que consome saldo dentro da janela proibida. Nesses casos, a aferição de materialidade depende de relatórios de veiculação (logs, faturamento, comprovantes de entrega por data/hora, URIs/URLs), devendo-se distinguir programação de efetiva veiculação.

(c) Autoria e imputação. É preciso individualizar quem acionou/financiou a veiculação: candidata(o)/partido/federação, terceiros(as) ou apoiadores(as) autônomos(as). A imputação penal exige dolo e vínculo material com o núcleo do tipo; a imputação contábil/administrativa pode operar com standards probatórios distintos, mas também demanda lastro documental suficiente para demonstrar gasto ilícito.

Dessa tensão decorre uma dupla trilha sancionatória:

  1. Esfera administrativa-contábil (T–48h a T+24h): remoção imediata (art. 6º, § 1º), multas por descumprimento de ordem e reconhecimento de gasto ilícito com potencial desaprovação das contas (§ 2º).
  2. Esfera penal (janela típica do art. 39, § 5º, IV): quando comprovada a veiculação paga no período criminoso (dia da eleição), pode haver apuração do crime, cumulável com as consequências administrativas já referidas.

Para mitigar riscos de imputação, recomenda-se a adoção de controles preventivos: (i) trava automática para impulsionamento a partir de T–49h (margem de segurança); (ii) segmentação de data e horário por fuso local; (iii) auditoria prévia de campanhas ativas; (iv) registro e guarda dos relatórios de veiculação e faturamento; (v) procedimentos de contingência com as plataformas para cancelamento imediato e comprovação do “time stamp” de desligamento. Tais medidas são decisivas tanto para evitar a materialidade do ilícito quanto para demonstrar diligência em eventual apuração penal.

Em síntese, a Resolução nº 23.714/2022 delimita administrativamente a vedação a um período mais amplo (48h–24h antes e 24h após), mas defendemos que não altera a exigência de tipicidade penal estrita para o crime do art. 39, § 5º, IV. O desafio hermenêutico consiste em evitar analogia in malam partem, assegurando que só haja persecução criminal quando presentes todos os elementos legais, sem prejuízo das repercussões contábeis e das ordens de remoção e multa previstas no âmbito administrativo.

Art. 6º É vedada, desde quarenta e oito horas antes até vinte e quatro horas depois da eleição, a veiculação paga, inclusive por monetização, direta ou indireta, de propaganda eleitoral na Internet, em sítio eleitoral, em blog, em sítio interativo ou social, ou em outros meios eletrônicos de comunicação da candidata ou do candidato, ou no sítio do partido, federação ou coligação (art. 7º da Lei n. 12.034, de 29 de setembro de 2009).

§ 1º Verificado descumprimento da vedação a que se refere o caput, o Tribunal Superior Eleitoral, em decisão fundamentada, determinará às plataformas a imediata remoção da URL, URI ou URN, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) a R$ 150.000,00 (cem e cinquenta mil reais) por hora de descumprimento, a contar do término da primeira hora após o recebimento da notificação.

§ 2º O descumprimento do disposto no caput configura realização de gasto ilícito de recursos eleitorais, apto a determinar a desaprovação das contas pertinentes, sem prejuízo da apuração do crime previsto no art. 39, § 5º, inciso IV, da Lei n. 9.504, de 30 de setembro de 1997

Lei 9.504/97

Art. 39. A realização de qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou fechado, não depende de licença da polícia.

§ 5º Constituem crimes, no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:

IV - a publicação de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos nas aplicações de internet de que trata o art. 57-B desta Lei, podendo ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente.    

 

8. Considerações finais

A evolução normativa do Poder de Polícia eleitoral revela três fases distintas: entre 1965 e 1988, prevaleceu um modelo de forte intervenção estatal, no qual a Justiça Eleitoral dispunha de ampla margem para restringir a propaganda sob argumentos como a preservação da ordem pública; a partir da Lei nº 9.504/1997 e consolidado pela Resolução nº 23.610/2019, verificou-se uma limitação significativa, restringindo o uso do poder de polícia a ilícitos objetivos e flagrantes, afastando a censura prévia e preservando a liberdade de expressão; por fim, com a Resolução nº 23.714/2022, houve nova expansão, voltada ao combate à desinformação eleitoral, inclusive por meio de medidas mais gravosas que a simples remoção de conteúdo.

É importante destacar que o Poder de Polícia Eleitoral só pode ser utilizado contra as propagandas eleitorais ou conteúdos que coloquem em xeque os resultados do pleito, e apenas durante o período eleitoral, preservando-se a pluralidade de ideias no debate democrático. O desafio contemporâneo está em manter esse equilíbrio em um cenário de rápida disseminação de (des)informações digitais e de sofisticadas estratégias de desinformação, exigindo da Justiça Eleitoral respostas céleres, proporcionais e juridicamente fundamentadas.

 

domingo, 3 de agosto de 2025

Desinformação Eleitoral e Democracia Digital: entre a Liberdade de Expressão, o Risco Sistêmico e o Desafio da Remoção Estrutural

 


Alexandre Basilio
Mestrando em Ciência Política, professor de Direito Digital e pesquisador em Democracia e Tecnologia.


1. Introdução

A era digital desafiou os pilares tradicionais da democracia liberal, convertendo as redes sociais em arenas instáveis de disputa simbólica, onde a desinformação eleitoral não apenas circula com velocidade incontrolável, mas também reconfigura os próprios padrões de coesão social e de construção da verdade pública.

Diante da ascensão de campanhas de desinformação orquestradas, com objetivos políticos e antidemocráticos, o debate jurídico não pode mais se restringir a fórmulas clássicas de liberdade de expressão. É preciso reconhecer que a arquitetura digital e a dinâmica emocional das redes sociais impõem uma nova gramática à regulação democrática, exigindo soluções integradas entre Direito, tecnologia e sociologia.

2. Redes sociais como rituais emocionais e identitários

A explicação sobre o fenômeno da desinformação, por muitos anos, esteve atrelada às metáforas de “bolhas digitais” ou “câmaras de eco”. No entanto, essas imagens são insuficientes para explicar a profundidade da adesão política tribalizada em ambientes digitais.

A partir da teoria das cadeias de rituais interacionais, desenvolvida por Randall Collins com base em Durkheim, compreende-se que as redes sociais não apenas difundem ideias, mas consolidam identidades coletivas através de rituais simbólicos digitais: curtidas, hashtags, compartilhamentos e indignações coletivas funcionam como formas de reforço de pertencimento grupal. O “outro político” deixa de ser adversário e passa a ser um herege a ser moralmente expurgado.

Autoras como Zeynep Tufekci e William Davies complementam essa perspectiva ao afirmar que a política digital contemporânea é movida não pela razão pública, mas por emoções tribais compartilhadas, como medo, raiva e orgulho. Assim, o discurso digital passa a ser uma performance moral, em que o objetivo é mais “lacrar” do que dialogar. Razão e verdade tornam-se questões diminutas, quando o que se defende são os interesses do grupo.

3. O paradoxo da tolerância e os limites jurídicos da expressão digital

Nesse ambiente altamente emocional e simbólico, a liberdade de expressão não opera como um instrumento de deliberação racional, mas como arma estratégica para ocupação e destruição do espaço público democrático.

Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, alertou para o chamado paradoxo da tolerância: “Se tolerarmos ilimitadamente os intolerantes, a tolerância será destruída e, com ela, a própria sociedade aberta.” Essa advertência filosófica tem aplicação jurídica direta: o Estado democrático tem o dever de proteger a liberdade, inclusive impondo limites à sua manipulação abusiva, sobretudo quando essa manipulação visa deslegitimar o processo eleitoral, propagar mentiras sistemáticas ou fomentar o descrédito institucional, o desafio é fazer isso por meio de soluções baseadas na arquitetura, em vez de mera força.

 

4. A crítica à verdade estatal e a centralidade da jurisdição no caso concreto

Embora o enfrentamento à desinformação seja legítimo e necessário, não se pode recorrer à instituição de uma “verdade oficial” definida previamente pelo Estado ou por órgãos administrativos como forma de controle informacional. Essa estratégia, além de arriscada sob a ótica democrática, pode reproduzir a lógica do Codex da Inquisição, em que ideias eram censuradas por desafiarem a ortodoxia dominante, sem espaço para controvérsia legítima ou dialética argumentativa.

A defesa da liberdade de expressão, especialmente em contextos nos quais há pluralidade de interpretações e múltiplos pontos de vista admissíveis, demanda a atuação do Poder Judiciário como espaço de deliberação institucionalizada e garantidora de direitos fundamentais. É apenas na análise do caso concreto, com contraditório e fundamentação adequada, que se pode afirmar se determinado conteúdo ultrapassa os limites constitucionais da liberdade e se converte em ilícito.

Esse modelo jurisdicional evita tanto o arbítrio do censor quanto a negligência frente a conteúdos abusivos. Ele preserva o núcleo democrático da liberdade de expressão, mas assegura sua compatibilidade com a integridade do processo eleitoral, elemento essencial da soberania popular.

5. O problema da remoção pontual: enxugar gelo digital

Mesmo quando há decisão judicial que reconhece o conteúdo como abusivo, o atual modelo de cumprimento é fragmentado e ineficaz. A ordem judicial é dirigida a uma plataforma específica, que remove o conteúdo naquele ambiente, mas variações idênticas ou ligeiramente modificadas continuam a circular em outras redes, grupos fechados ou perfis espelhados.

Esse ciclo de “remoção e replicação” — verdadeiro enxugamento de gelo digital — fragiliza a autoridade judicial e impede a concretização da tutela jurisdicional.

A resposta para esse dilema não está na censura ampla ou na criação de uma “verdade estatal”, mas sim na criação de mecanismos estruturais de remoção coordenada, baseados em parâmetros objetivos definidos pelo próprio Judiciário.

 

6. “Code is Law”: arquitetura digital como instrumento de cumprimento de decisões

O jurista Lawrence Lessig, em sua obra Code and Other Laws of Cyberspace, afirmou que o comportamento digital é regulado por quatro forças: o Direito, o mercado, as normas sociais e o código — sendo este último a arquitetura técnica das plataformas, ou seja, o que é possível fazer em seu ambiente.

Essa arquitetura pode ser moldada para cumprir decisões judiciais com maior eficácia, por meio de soluções como:

  • Hashing e fingerprinting de conteúdos audiovisuais para rastrear réplicas;
  • Detecção automática por IA de conteúdos parcialmente modificados, baseando-se em vetores semânticos e reconhecimento multimodal (texto, imagem, áudio);
  • Interoperabilidade obrigatória entre plataformas para garantir que a ordem judicial vincule toda a rede, e não apenas o réu do processo.

A efetividade no combate à desinformação só pode ser garantida a partir de medidas dessa jaez, batalha única que deveria ser travada contra as big techs para implementação de tais soluções.

 

7. O art. 9-G da Resolução TSE nº 23.610/2019: proposta inovadora e ainda pendente de implementação efetiva

Nesse sentido, merece destaque a inclusão do art. 9-G na Resolução TSE nº 23.610/2019, pela Resolução TSE nº 23.732/2024, de minha autoria, a partir do qual eu propus a criação de um repositório oficial de decisões judiciais de remoção de conteúdos ilícitos e desinformativos.

O dispositivo prevê que, uma vez reconhecida a ilicitude do conteúdo, a decisão judicial seja inserida nesse repositório, notificando automaticamente todas as plataformas relevantes para impedir sua veiculação em qualquer formato reconhecível.

Esse modelo busca resolver dois problemas centrais:

  1. Evitar a replicação do conteúdo ilícito em novos canais ou perfis;
  2. Transformar a decisão judicial em comando técnico estruturado, replicável e auditável, sem depender da interpretação subjetiva das plataformas.

Contudo, é necessário reconhecer que o art. 9-G ainda carece de efetiva implementação técnica. Até o momento, não há um repositório funcional com interoperabilidade entre plataformas e estrutura de IA aplicada à detecção automática do conteúdo judicialmente proibido. A eficácia da norma, portanto, depende da vontade institucional de desenvolver, com base na lei, os meios tecnológicos necessários para torná-la exequível.

Além disso, o repositório não foi pensado para armazenar apenas o PDF das decisões, conforme vem sendo feito. Ao contrário, deve abrigar as imagens, áudios e vídeos originais utilizados no ilícito, de forma que as empresas envolvidas em disponibilizar o conteúdo online, ao serem intimadas da decisão que considere tais elementos como proibidos, possam configurar seus servidores para banir e impedir replicações diretas ou indiretas de tais conteúdos.

Abaixo uma visão simplificada do Processo:

  

Início

1) Provocação da discussão por meio de Representação Eleitoral contra a desinformação pelos interessados legitimados.

2)      Atuação direta do MP ou de Ofício da  Justiça Eleitoral para proteção de regularidade do pleito ( desinformação contra Urnas e Resultados dos Pleitos).

3)  Julgamento monocrático do caso (não habilita ao uso do Art. 9-G, por ser medida excepcional).

  

Julgamento Colegiado.

 1)      TRE ou TSE julgam de forma colegiada a representação considerando a inclusão da desinformação no Repositório Eleitoral. 

2)      Colegiado considera necessária a proibição do conteúdo durante período eleitoral 

3) Contra decisões proferidas pelos TREs cabem recursos ao TSE para remoção dos dados do repositório.   

 

Medida Administrativa:

1)      Inserção dos dados como áudio, vídeo ou imagens acompanhados da decisão que determina sua ilicitude. 

2)      A mera inserção no sistema dispara a notificação a todos os provedores de conteúdo, parceiros cadastrados do TSE (cadastro obrigatório). 

3)      Provedores de aplicações e de conteúdo, de posse das informações necessárias viabilizam meios tecnológicos para que esses conteúdos sejam plenamente removidos e não voltem mais a circular na rede, inclusive WhatsApp (tecnicamente possível para conteúdos já em circulação). 

4)      Conteúdo definitivamente proibido, divulgado amplamente aos provedores cadastrados, de forma que não volte a circular no período eleitoral, sob pena de responsabilização objetiva.

 


8. Conclusão: desafios para o legislador e para a democracia digital

A desinformação eleitoral não é apenas um desvio ético, mas um risco sistêmico para a democracia. Seu combate exige um novo modelo regulatório, que una eficácia jurisdicional, racionalidade tecnológica e garantias constitucionais.

O legislador brasileiro terá papel decisivo nas próximas reformas:

  • Regulamentar o uso de inteligência artificial para cumprimento de decisões judiciais de remoção;
  • Estabelecer normas de responsabilidade compartilhada entre plataformas, agentes públicos e provedores de infraestrutura digital;
  • Expandir o modelo do art. 9-G, transformando-o em um instrumento central de proteção do processo democrático.

Vivemos uma realidade em que, pela primeira vez, a punição pelo mal causado, no caso, a desinformação, não traz qualquer solução para a preservação democrática. Precisamos agir preventivamente e na mesma velocidade da circulação da desinformação. Agir posteriormente, por mais grave que seja a punição aos envolvidos, de qualquer forma, significa que perdemos a batalha.

 

Em suma, não se trata de suprimir a divergência nem de instituir dogmas oficiais, mas de criar as condições jurídicas e técnicas para que o debate público se dê em ambiente íntegro, com base em informação verificável e sob proteção jurisdicional contra abusos e manipulações.

O desafio do presente é encontrar esse ponto de equilíbrio — onde liberdade e responsabilidade digital caminhem lado a lado, sem concessões nem retrocessos.

 

Referências Bibliográficas 

COLLINS, Randall. Interaction Ritual Chains. Princeton: Princeton University Press, 2004.

DAVIES, William. Estados Nervosos: Como as emoções tomaram o lugar da racionalidade no debate público. São Paulo: Todavia, 2021.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LESSIG, Lawrence. Code and Other Laws of Cyberspace. Nova York: Basic Books, 1999.

POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. São Paulo: Itatiaia, 1987.

TUFEKCI, Zeynep. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. New Haven: Yale University Press, 2017.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.610/2019. Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. Disponível em: https://www.tse.jus.br. Acesso em: 17 maio 2025.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.732/2024. Altera a Resolução TSE nº 23.610/2019. Disponível em: https://www.tse.jus.br. Acesso em: 17 maio 2025.

 

sexta-feira, 11 de julho de 2025

O Anonimato na Propaganda Eleitoral Digital: Vedação Normativa, Paradoxo Jurídico e Perspectivas de Reformulação

 

* Alexandre Basílio Coura[1]

 

 


 

Introdução

A crescente digitalização das interações sociopolíticas e das campanhas eleitorais ampliou significativamente os desafios enfrentados pelo Direito Eleitoral no que diz respeito à responsabilização por manifestações anônimas, notadamente aquelas que veiculam propaganda eleitoral ou disseminam desinformação. Diante desse cenário, o ordenamento jurídico brasileiro estabeleceu, de forma categórica, a vedação ao anonimato na propaganda eleitoral digital, impondo a obrigatoriedade de identificação do responsável pelo conteúdo durante o período de campanha.

 

2. Fundamento Normativo e Limites da Identificação

 

A Resolução TSE nº 23.610/2019, que disciplina a propaganda eleitoral, estabelece em seu artigo 30 que “é livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da internet [...] e por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica e mensagem instantânea”. Tal dispositivo reflete a aderência do Direito Eleitoral ao princípio republicano da transparência, essencial à responsabilização por condutas no debate público.

O descumprimento dessa norma enseja a imposição de sanção pecuniária, nos termos do §1º do referido artigo, que prevê multa entre R$ 5.000,00 e R$ 30.000,00 ao autor da propaganda anônima, bem como ao seu beneficiário, desde que comprovado o prévio conhecimento. A responsabilização, contudo, não alcança os provedores de aplicação, salvo nos casos de descumprimento de determinação judicial (§1º-A).

 

3. A Paradoxa Estrutura da Sanção por Anonimato

 

A regulamentação apresenta, entretanto, um problema estrutural. Para que a sanção seja aplicada, é imprescindível que se demonstre a impossibilidade de identificação do autor do conteúdo — condição que, paradoxalmente, depende da superação do anonimato para que a multa tenha um destinatário conhecido e possa ser aplicada. Traduzindo em miúdos, só se permite aplicar a multa quando o responsável pelo ilícito for desconhecido.

Deve-se ainda considerar que o § 2º do artigo 38 da Resolução dispõe que “a ausência de identificação imediata do usuário responsável pela divulgação do conteúdo não constitui circunstância suficiente para o deferimento liminar do pedido de quebra de sigilo de dados”.

Portanto, ainda que o anonimato seja vedado, sua mera constatação não autoriza a mitigação da privacidade digital, impondo-se a observância dos critérios previstos no artigo 40 da Resolução. Assim, são requisitos para a formulação válida do pedido judicial de quebra de sigilo de dados:

I - existência de indícios consistentes da prática de ilícito eleitoral;

II - demonstração motivada da utilidade dos dados requeridos;

III- delimitação temporal dos registros pretendidos.

O §3º do artigo 38 complementa essa lógica, ao estabelecer que a publicação apenas será considerada anônima se restar infrutífera a adoção das medidas de identificação previstas no artigo 40. Trata-se, portanto, de uma anomia prática: o anonimato é vedado, mas a responsabilização exige que se prove sua ocorrência concreta, sob pena de medidas que só podem ser aplicadas no fracasso da empreitada, tornando impossível a própria punição.

Essa estrutura cria um impasse: a sanção prevista no §2º do art. 57-D da Lei nº 9.504/1997 pode ser juridicamente cabível, mas, na ausência de um sujeito identificado, torna-se inexequível. Esse vácuo de aplicabilidade enfraquece tanto a função dissuasória quanto a educativa da norma, comprometendo a eficácia do sistema sancionador e fomentando uma percepção de impunidade no ambiente digital eleitoral.

Nesses casos, resta ao judiciário, uma vez que desconhecido o autor do ilícito, determinar ao provedor de aplicação a suspensão da conta ou a simples remoção do conteúdo considerado irregular, medida inerte, pois, segundos depois haverá novo canal ou nova publicação ostentando as mesmas irregularidades, objetivando turbar o pleito e mantendo-se impune em razão da ausência de racionalidade normativa.

 

4. Proposta de Aperfeiçoamento Regulatório

 

Para superar esse déficit normativo-operacional, propõe-se a adoção de mecanismo de identificação mínima prévia. Uma alternativa viável consistiria na obrigatoriedade de que todo usuário que deseje se manifestar publicamente sobre temáticas políticas mantenha vinculado ao seu perfil um endereço eletrônico público para intimação judicial. A ausência dessa informação, ou o não atendimento a comunicações judiciais dirigidas a esse canal, configuraria presunção qualificada de anonimato, legitimando a remoção do conteúdo ilícito ou até suspensão do perfil em alguns casos, até que a identificação fosse viabilizada.

 

Tal exigência não se afastaria dos princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018), na medida em que o tratamento da informação se daria de forma proporcional, com finalidade legítima, adequação à finalidade eleitoral e observância do devido processo legal, possibilitando até mesmo o uso de pseudônimos no endereço de e-mail, desde que reconhecido pelo usuário como canal oficial para intimações nesses casos.  

 

5. Conclusão

 

A vedação ao anonimato na propaganda eleitoral digital constitui instrumento essencial à proteção da integridade do pleito e à responsabilização de condutas no espaço público virtual. Contudo, a eficácia dessa norma depende da superação de entraves estruturais e probatórios que inviabilizam sua aplicação prática.

A introdução de mecanismos mínimos de identificação — como o e-mail público vinculado ao perfil — permitiria compatibilizar a liberdade de expressão com a responsabilização jurídica, promovendo um ambiente eleitoral digital mais transparente, seguro e coerente com os valores democráticos constitucionais.

Tal proposta de solução pela arquitetura deveria, inclusive, integrar as futuras discussões legislativas sobre a reforma do Código Eleitoral, com imposição de implementação aos provedores de aplicações,  conferindo maior densidade normativa ao enfrentamento das práticas anônimas ilícitas no espaço digital, hoje concentradas apenas em responsabilizar as big techs ou remover individualmente os ilícitos.



[1]     Alexandre Basílio Coura é palestrante, professor e pesquisador de Direito Digital e Eleitoral em várias universidades em cursos de pós-graduação. Graduado em Direito, em Ciência Política e em Redes de Computadores. Atualmente cursa um mestrado na Universidade de Lisboa e conclui uma graduação em engenharia de computadores.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

ESTUDO DE CASO - PESQUISA AM 01355/2022.

  

      AS PESQUISAS COMO FORMA DE DESINFORMAÇÃO LEGITIMADA PELA JUSTIÇA ELEITORAL.

Autor: Alexandre Basílio.

 

 

A presente análise trata da pesquisa eleitoral registrada no sistema PesqEle do Tribunal Superior Eleitoral sob o número 01355/2022, cuja responsabilidade foi atribuída à empresa AUGUSTO DA S. ROCHA EIRELI, também identificada como AR7 Pesquisa de Opinião e Consultoria Estatística.

Antes de examinar os requisitos legais e os aspectos metodológicos relacionados ao registro da pesquisa, impõe-se destacar inconsistências de natureza estrutural que, dada sua gravidade, devem sempre ser levadas ao conhecimento do Ministério Público Eleitoral e, em casos específicos, da Polícia Federal para continuidade das investigações.

Tais inconsistências dizem respeito ao cumprimento das obrigações previstas pela Resolução TSE nº 23.600/2019, especialmente quanto à regularidade do cadastro das entidades que realizam pesquisas eleitorais no Brasil.

Nos termos do art. 5º da referida norma, é obrigatória a inserção, no sistema PesqEle, das informações constantes dos incisos I a IX, como condição para o processamento do registro. Entre os dados exigidos, merecem destaque o número de inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), previsto no inciso III, e o endereço completo para recebimento de notificações e comunicações processuais, conforme disposto no inciso VII e nos §§ 4º e seguintes do art. 13 da Resolução, bem como na norma que regula as representações, reclamações e pedidos de direito de resposta.

Entretanto, conforme revelado por reportagens da imprensa nacional e confirmado por meio de análise documental, a empresa responsável pela pesquisa de número 01355/2022 não observou de forma satisfatória tais exigências. As imprecisões constantes nos dados apresentados ao sistema da Justiça Eleitoral fragilizam a credibilidade do levantamento e suscitam sérias dúvidas quanto à lisura de sua execução.

O responsável técnico e proprietário da empresa é o Sr. Augusto da Silva Rocha, que registrou sua empresa na Receita Federal sob o CNPJ nº 29.833.202/0001-04. Consta como endereço da pessoa jurídica o imóvel localizado na Rua Jaboticabal, nº 98, bairro Vila Bertioga, município de São Paulo.

Não obstante, verifica-se a existência de divergências relevantes entre as informações constantes nos cadastros oficiais e aquelas informadas no momento do registro da pesquisa perante a Justiça Eleitoral, como se observa das imagens seguintes.

Note que a partir do site da Receita Federal é possível analisar os dados da pessoa jurídica registrada. Observem o endereço oficial da AR7 Pesquisa de Opinião e Consultoria Estatística:

Foi realizada a verificação do endereço que, nos termos da Resolução TSE nº 23.600/2019, deve ser obrigatoriamente informado para fins de eventual solicitação de acesso aos dados internos da pesquisa.

A localização indicada foi consultada por meio do Google Maps, sendo possível visualizar o imóvel no seguinte link:

https://www.google.com/maps/place/Rua+Jaboticabal,+98+-+Vila+Bertioga,+S%C3%A3o+Paulo+-+SP,+03188-000/@-23.5602276,-46.5819164,3a,34.9y,197.89h,90.52t/data=!3m6!1e1!3m4!1sMlya8UqajuXC72MWKM-F8g!2e0!7i16384!8i8192!4m5!3m4!1s0x94ce5ea510234661:0x8aafee5989868961!8m2!3d-23.5603495!4d-46.58198

 

Clicando na URL informada, chega-se à seguinte imagem do local vinculado ao endereço cadastrado pela empresa responsável pela pesquisa eleitoral: trata-se de uma residência simples, sem qualquer identificação que indiquem o funcionamento regular de empresa dedicada à realização de pesquisas de opinião ou à prestação de serviços estatísticos.

Observa-se que o número 98 corresponde, na verdade, ao pavimento superior de um estabelecimento comercial — especificamente, uma padaria localizada no térreo. Para dar maior respaldo à análise e contextualizar adequadamente a estrutura física do local indicado, apresenta-se, a seguir, a visualização do imóvel por outro ângulo, obtida também por meio do Google Maps.

 

A partir da análise do endereço cadastrado, adotou-se uma prática comum na investigação de empresas com indícios de irregularidade: a verificação da existência de outras pessoas jurídicas registradas no mesmo local.

A consulta revelou que, no mínimo, dez empresas estão formalmente domiciliadas nesse endereço. Ressalte-se que a busca foi interrompida após a décima identificação, diante da constatação de que a quantidade de registros ali concentrados era significativamente superior, sugerindo tratar-se de endereço utilizado como domicílio fiscal de múltiplas empresas, prática frequentemente associada à constituição de pessoas jurídicas de fachada.

Abaixo seguem os documentos das empresas que, em tese, funcionam no mesmo endereço:

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Diante dos indícios de irregularidades já apontados e da ausência de informações obrigatórias exigidas para o correto preenchimento do sistema PesqEle, nos termos do art. 5º da Resolução TSE nº 23.600/2019, impõe-se questionar a própria legitimidade e autenticidade do registro da empresa AUGUSTO DA S. ROCHA EIRELI / AR7 Pesquisa de Opinião e Consultoria Estatística junto à Justiça Eleitoral.

A gravidade dos elementos identificados permite cogitar, inclusive, a invalidade das pesquisas eleitorais registradas por essa pessoa jurídica no ano de 2022, hipótese que pode ser objeto de provocação formal dirigida ao Tribunal Superior Eleitoral por partidos políticos ou pelo Ministério Público Federal.

Além dos fortes indícios de que se trata de uma empresa de fachada, merece especial atenção o fato de o capital social declarado ser de R$ 100.000,00 (cem mil reais). Tal dado, por si só, não ensejaria suspeitas, não fosse o volume e a abrangência dos registros realizados no curto intervalo dos sete dias considerados nesta investigação.

Entre os dias 17 e 24 de setembro de 2022, a empresa cadastrou, no sistema PesqEle, um total de 17 (dezessete) pesquisas eleitorais, distribuídas por diferentes regiões do país, todas declaradamente custeadas com recursos próprios. A dimensão da operação e o seu financiamento exclusivo sem contratação por terceiros reforçam a necessidade de apuração rigorosa acerca da capacidade operacional e financeira da empresa.

Observem os dados oficiais:

  

Destaca-se, ainda, que a referida empresa, localizada no pavimento superior de uma padaria e que compartilha o endereço com ao menos outras nove pessoas jurídicas,  é responsável pelo registro de 17 (dezessete) pesquisas eleitorais realizadas em municípios geograficamente distantes entre si.

Como exemplo, cita-se a pesquisa registrada no estado do Amazonas em 17 de setembro de 2022 e, posteriormente, aquelas declaradas nos estados de São Paulo, Pará e Maranhão, todas no dia 24 do mesmo mês. Trata-se de distâncias superiores a 3.000 quilômetros entre alguns desses municípios, o que impõe um questionamento legítimo sobre a capacidade operacional de execução simultânea desses levantamentos em campo.

Conforme consta dos registros oficiais, todas essas pesquisas foram declaradas como custeadas com recursos próprios da empresa. Assim, no intervalo de apenas dez dias, a pequena pessoa jurídica de titularidade do Sr. Augusto da Silva Rocha comprometeu-se com despesas superiores a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais) em levantamentos eleitorais em diversas unidades da federação, sem que se verifique qualquer contratação por terceiros ou fonte de financiamento externa.

Vejamos a seguir os dados que ilustram essa operação.

 

 

Número da pesquisa

Empresa

Data do Registro

Local

Custo da Pesquisa:

 

 

AM-01355/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

17/09/22

AMAZONAS

R$ 30.000,00

 

 

PA-05811/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

20/09/22

PARÁ

R$ 20.000,00

 

 

BR-00865/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

20/09/22

BRASIL

R$ 20.000,00

 

 

PA-06644/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

22/09/22

PARÁ

R$ 20.000,00

 

 

MA-06953/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

23/09/22

MARANHÃO

R$ 40.000,00

 

 

BR-02677/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

BRASIL

R$ 7.000,00

 

 

SP-09754/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

BR-07908/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

BRASIL

R$ 7.000,00

 

 

MA-06697/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

MARANHÃO

R$ 7.000,00

 

 

SP-09107/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

BR-07196/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

BRASIL

R$ 7.000,00

 

 

SP-05784/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

BR-09242/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

BRASIL

R$ 7.000,00

 

 

SP-06277/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

SP-02664/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

BR-01564/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

BRASIL

R$ 7.000,00

 

 

P-08473/2022

AUGUSTO DA S ROCHA EIRELI /

24/09/22

SÃO PAULO

R$ 7.000,00

 

 

 

 

TOTAL

R$ 214.000,00

 

Dispensa-se qualquer juízo adicional quanto à gravidade dos indícios revelados. É, no mínimo, questionável que uma empresa registrada em um imóvel situado sobre uma padaria, o mesmo endereço de outras dez pessoas jurídicas, declare, como recursos próprios, valores investidos em pesquisas eleitorais que correspondem ao dobro do seu capital social registrado.

Tal discrepância, associada à dispersão territorial das coletas de dados e à ausência de contratações por terceiros, compromete a credibilidade da atuação empresarial e sugere a existência de irregularidades que demandam apuração imediata.

A relevância do caso também foi percebida por outros agentes de controle social. O jornal O Globo, ao tratar da atuação do estatístico Augusto da Rocha, proprietário da empresa AR7 Pesquisa de Opinião e Consultoria Estatística, registrou o seguinte trecho:

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2020/estatistico-recordista-na-supervisao-de-pesquisas-eleitorais-sera-investigado-por-conselho-da-categoria-24719770


Importa ressaltar que as 17 pesquisas registradas pela empresa AR7 não são as únicas sob a responsabilidade técnica do estatístico Augusto da Silva Rocha. O mesmo profissional também figura como responsável por diversos levantamentos realizados por outras empresas do setor, como é o caso da J. J. Coelho / Instituto Phoenix & Associados, pela qual subscreveu, no mínimo, outras 12 pesquisas eleitorais no mesmo período. Considerando apenas essas duas pessoas jurídicas, constata-se que Augusto da Silva Rocha acumulava, à época, a responsabilidade técnica por 29 (vinte e nove) pesquisas eleitorais registradas no Tribunal Superior Eleitoral.

Tal volume de atuação, concentrado em curto espaço de tempo, não passou despercebido pelas instâncias fiscalizatórias da própria categoria profissional. A elevada produtividade do estatístico já foi alvo de críticas e apurações por parte do Conselho Federal de Estatística, o que reforça a necessidade de maior controle sobre a atuação de profissionais que operam nesse segmento estratégico do processo eleitoral.

Entretanto, uma questão de ordem lógica impõe-se: por qual razão alguém custearia e assinaria, com recursos próprios, 17 pesquisas eleitorais, distribuídas por diferentes regiões do país, sem qualquer retorno financeiro declarado? Que tipo de motivação justificaria tamanho engajamento sem vínculo contratual ou compensação econômica? Esse aparente paradoxo foi abordado em investigação jornalística conduzida por O Globo, conforme se observa a seguir:

https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2020/pesquisas-eleitorais-bancadas-por-institutos-crescem-em-meio-suspeitas-de-fraudes-conheca-as-historias-24719935

Como se depreende da análise acima, o cenário delineado revela a existência de um verdadeiro leilão de resultados, no qual os números divulgados nas pesquisas eleitorais são moldados conforme a conveniência de quem estiver disposto a financiar tais levantamentos. Esse modelo compromete a integridade do processo democrático e dá ensejo a uma forma sofisticada de desinformação, chancelada pela própria Justiça Eleitoral ao deixar de adotar mecanismos efetivos de verificação e controle sobre os dados declarados pelas empresas responsáveis.

Além das irregularidades formais já apontadas, especialmente aquelas relativas ao endereço da empresa, à capacidade operacional e ao custeio incompatível com o capital social declarado, identificam-se vícios adicionais que, por si só, seriam suficientes para ensejar a invalidação do registro da pesquisa e sua equiparação a levantamento não registrado, nos termos da legislação eleitoral.

Nessas hipóteses, a sanção prevista é a aplicação de multa, cujo valor mínimo é de R$ 53.205,00 (cinquenta e três mil duzentos e cinco reais), conforme estabelece o art. 18 da Resolução TSE nº 23.600/2019. A seguir, detalham-se os demais elementos que comprometem a regularidade da pesquisa em questão.

1) Da ausência de informação quanto à origem dos recursos utilizados na realização da pesquisa eleitoral

A Resolução TSE nº 23.600/2019 estabelece, de forma expressa, a obrigatoriedade de indicação da origem dos recursos empregados na realização de pesquisas eleitorais, mesmo quando estas forem custeadas com recursos próprios. Trata-se de exigência voltada à transparência do processo e à fiscalização da regularidade do financiamento dos levantamentos de opinião divulgados durante o período eleitoral.

Dispõe o art. 2º da mencionada norma:

Art. 2º Para os fins desta resolução, consideram-se obrigatórias as seguintes informações:

(...)

II – valor e origem dos recursos despendidos na pesquisa, ainda que realizada com recursos próprios. (sem grifos no original)

No entanto, ao se examinar o registro da pesquisa AM-01355/2022 no sistema PesqEle, constata-se a completa omissão quanto à origem dos valores empregados. Limita-se o responsável técnico a informar genericamente o uso de recursos próprios, sem qualquer detalhamento sobre a fonte, natureza ou lastro financeiro que sustente o custeio da operação — o que afronta diretamente a exigência normativa e compromete a transparência e a rastreabilidade dos dados financeiros envolvidos.

A ausência dessa informação impede o controle institucional e social sobre possíveis fraudes, simulações contratuais ou utilização indevida de recursos para influenciar a opinião pública, especialmente em um cenário eleitoral de elevada competitividade. Tal omissão, por si só, configura hipótese de descumprimento da Resolução e fundamenta eventual requerimento de invalidação da pesquisa, com a aplicação das sanções previstas.  

 

2) Da ausência de indicação da área física de realização da pesquisa no momento do registro

 

A Resolução TSE nº 23.600/2019 estabelece, como condição indispensável para o registro válido de pesquisas eleitorais, a apresentação de informações detalhadas sobre o plano amostral. Entre os elementos exigidos, encontra-se a descrição da área física de realização do trabalho a ser executado, o que permite aferir a abrangência territorial da coleta dos dados e a consistência metodológica da amostra.

 O comando normativo encontra-se delineado no inciso IV do § 2º do art. 2º da referida resolução:

 Art. 2º

(...)

§ 2º Para efeito de registro, a proposta de pesquisa a ser realizada deverá conter:

(...)

IV – plano amostral e ponderação quanto a gênero, idade, grau de instrução, nível econômico da pessoa entrevistada e área física de realização do trabalho a ser executado, bem como nível de confiança e margem de erro, com a indicação da fonte pública dos dados utilizados.

 No caso da pesquisa AM-01355/2022, verifica-se que tal requisito não foi observado. O campo destinado à descrição da área física de realização da pesquisa foi deixado em branco ou preenchido de forma genérica e insuficiente, sem qualquer delimitação espacial que permita aferir a coerência entre o local da coleta e os dados estatísticos apresentados. A ausência dessa informação compromete a validade metodológica da pesquisa e inviabiliza a sua adequada fiscalização por parte dos partidos, do Ministério Público e da própria Justiça Eleitoral. 

Trata-se, portanto, de vício material que, além de descumprir frontalmente a norma regulamentar, inviabiliza a aferição da representatividade da amostra e compromete a transparência e a legitimidade do levantamento divulgado.

O mesmo estatístico, em outra oportunidade, cuidou de mencionar a área física de realização do trabalho, conforme notamos da pesquisa feita por ele, registrada sob o número 05811/2022, no Pará, na mesma semana:

Prova de que o profissional sabe desta obrigação é que em outra pesquisa o preenchimento dos dados obrigatórios foi observado:



3) Da ausência de inclusão de todos os candidatos oficialmente registrados no questionário da pesquisa

A Resolução TSE nº 23.600/2019 é categórica ao estabelecer que, a partir da publicação dos editais de registro de candidaturas, todas as pessoas oficialmente registradas devem obrigatoriamente constar na lista de opções apresentada às pessoas entrevistadas nas pesquisas eleitorais de cunho estimulado.

Dispõe o art. 3º da norma:

 Art. 3º A partir das publicações dos editais de registro de candidatas e candidatos, os nomes de todas as candidatas e de todos os candidatos cujo registro tenha sido requerido deverão constar da lista apresentada às pessoas entrevistadas durante a realização das pesquisas. (sem grifos no original)

 Apesar da clareza do dispositivo, a pesquisa AM-01355/2022 revela descumprimento também quanto a esse requisito. A análise do questionário utilizado evidencia a omissão do nome do candidato Pastor Peter Miranda, que, à época, figurava com pedido de registro regularmente apresentado para o cargo de Senador.

A exclusão de um nome validamente registrado compromete não apenas a fidelidade do levantamento em relação à realidade eleitoral, mas também pode influenciar indevidamente a percepção do eleitorado, ao induzir a impressão de que determinado candidato não está mais na disputa ou não possui relevância eleitoral. Trata-se, portanto, de violação grave às normas que regulam a realização de pesquisas eleitorais, passível de ensejar sanções e de justificar a invalidação do levantamento.

A exclusão do nome do candidato Pastor Peter Miranda do questionário de pesquisa estimulada, referente à disputa pelo cargo de Senador no estado do Amazonas, não foi o único erro identificado. Verifica-se, ainda, que o material visual utilizado durante as entrevistas — comumente denominado disco e destinado à exibição das fotografias e nomes dos candidatos ao eleitor entrevistado — também apresentou inconsistência relevante: a ausência da imagem do candidato Omar Aziz, então regularmente registrado na disputa ao Senado Federal.

Tal omissão fere diretamente o princípio da isonomia entre os candidatos, além de comprometer a neutralidade e a confiabilidade do instrumento de pesquisa. A apresentação incompleta dos nomes e imagens no material utilizado em campo constitui grave irregularidade, apta a gerar distorções nos resultados apurados e a justificar, por si só, a desconsideração da pesquisa para fins de divulgação oficial.

 

 

 4) Do uso indevido de documento com assinatura digital desvinculado da pesquisa AM-01355/2022

A Resolução TSE nº 23.600/2019, ao disciplinar os requisitos para o registro de pesquisas eleitorais, estabelece de forma clara a obrigatoriedade de identificação do profissional de Estatística responsável, exigindo não apenas a indicação de seu nome e número de registro no Conselho Regional competente, mas também a apresentação de assinatura com certificação digital, vinculada especificamente à pesquisa registrada.

O comando normativo está previsto no art. 2º, inciso IX:

Art. 2º


(...)
IX – nome da(o) profissional de Estatística responsável pela pesquisa, acompanhado de sua assinatura com certificação digital e o número de seu registro no Conselho Regional de Estatística competente.

No entanto, ao se examinar os documentos anexados ao registro da pesquisa AM-01355/2022, verifica-se que a empresa responsável apresentou um arquivo com assinatura digital do estatístico que não guarda qualquer relação com a pesquisa em análise. Trata-se de documento genérico, ou mesmo vinculado a outro levantamento, o que evidencia o descumprimento do requisito normativo essencial.

Tal irregularidade compromete a autenticidade do registro, pois inviabiliza a validação técnica do responsável pelo plano amostral e pela metodologia empregada. Além disso, impede a responsabilização do profissional caso sejam identificadas fraudes estatísticas ou distorções metodológicas, violando diretamente os princípios da transparência, da rastreabilidade e da boa-fé no processo eleitoral. Trata-se, portanto, de vício formal e material apto a ensejar a nulidade do registro e a aplicação das penalidades previstas.

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5) Da falha na complementação dos dados exigidos — pesquisa considerada não registrada

 

De forma ainda mais grave que as irregularidades anteriormente descritas, verifica-se que a empresa responsável deixou de cumprir requisito essencial à validade do registro, qual seja, a complementação obrigatória dos dados da amostra, nos termos do § 7º do art. 2º da Resolução TSE nº 23.600/2019.

O dispositivo assim dispõe:

 

Art. 2º, § 7º A partir do dia em que a pesquisa puder ser divulgada e até o dia seguinte, o registro deverá ser complementado, sob pena de ser a pesquisa considerada não registrada, com os dados relativos:
(...)
IV – em quaisquer das hipóteses dos incisos I, II e III deste parágrafo, ao número de eleitoras e eleitores pesquisadas(os) em cada setor censitário e à composição quanto a gênero, idade, grau de instrução e nível econômico das pessoas entrevistadas na amostra final da área de abrangência da pesquisa eleitoral.

 

No caso da pesquisa AM-01355/2022, tal complementação não foi realizada. A ausência dos dados desagregados por setor censitário e das informações sobre a composição amostral — como gênero, faixa etária, escolaridade e nível econômico — impossibilita a verificação da consistência metodológica da pesquisa, bem como a replicabilidade da inferência estatística realizada.

Conforme prevê expressamente a norma, a omissão nesse ponto acarreta a desqualificação do levantamento como pesquisa registrada, equiparando-o, para todos os fins legais, a uma pesquisa clandestina, sujeita às sanções previstas, inclusive a multa mínima de R$ 53.205,00 (cinquenta e três mil duzentos e cinco reais), conforme dispõe o art. 18 da mesma resolução. Trata-se, portanto, de vício insanável, que compromete a validade jurídica e a confiabilidade pública da pesquisa em questão.

 

Conclusão

 

O caso analisado não constitui uma exceção, mas representa uma prática recorrente no cenário eleitoral brasileiro. A existência de pesquisas com indícios de irregularidade — seja na origem dos recursos, na estrutura das empresas responsáveis, na metodologia empregada ou na omissão de dados obrigatórios — evidencia um modelo permissivo e frágil de controle, no qual a responsabilidade pela integridade das informações repousa exclusivamente sobre os entes privados que produzem os levantamentos.

A preocupação se acentua diante da impossibilidade de atuação proativa por parte da Justiça Eleitoral, que, por ausência de previsão constitucional e legal específica, não detém competência para exercer controle prévio sobre o conteúdo das pesquisas registradas, ainda que estas sejam amplamente divulgadas e interpretadas pela população como se se tratasse de dados oficiais, legitimados pelo próprio TSE.

Tal limitação está expressamente reconhecida na Resolução TSE nº 23.600/2019. De um lado, o § 5º do art. 2º dispõe que "a integridade e o conteúdo dos arquivos e das informações inseridos no PesqEle são de inteira responsabilidade da entidade ou empresa realizadora do registro da pesquisa eleitoral". De outro, o § 1º do art. 10, incluído pela Resolução TSE nº 23.676/2021, é claro ao afirmar que "a Justiça Eleitoral não realiza qualquer controle prévio sobre o resultado das pesquisas, tampouco gerencia ou cuida de sua divulgação."

Esse vácuo institucional acaba por permitir que levantamentos estatísticos potencialmente fraudulentos circulem com aparência de legalidade, gerando desinformação e interferindo na formação da vontade popular. A ausência de mecanismos legais eficazes para impedir ou corrigir essas distorções coloca em risco a lisura do processo eleitoral e exige urgente reflexão sobre a necessidade de aprimoramento normativo no tratamento das pesquisas eleitorais no Brasil, o que esperamos que aconteça com a chegada do novo Código Eleitoral.