sábado, 31 de maio de 2025

Tema de Repercussão Geral 987: Liberdade de Expressão, Responsabilização das Plataformas e os Desafios das Eleições Digitais



Introdução: O que está em jogo?

Na próxima quarta-feira, 4 de junho, o Supremo Tribunal Federal julgará o Tema de Repercussão Geral 987, que trata da possibilidade de responsabilização civil dos provedores de aplicação por conteúdo gerado por terceiros. O julgamento é considerado crucial por envolver questões sensíveis relacionadas à liberdade de expressão, à responsabilidade das plataformas digitais e à regulação do espaço público virtual. Sua repercussão poderá ser sentida de forma direta nas eleições futuras, principalmente diante do papel central das redes sociais e serviços de mensagens na dinâmica eleitoral contemporânea.

A decisão a ser proferida poderá estabelecer novos parâmetros sobre os limites da atuação das plataformas digitais e o dever de controle prévio ou reativo de conteúdos, impactando diretamente a forma como o debate político é travado na internet e a segurança jurídica de atores públicos, privados e da própria Justiça Eleitoral.

Marco Civil da Internet e sua integração ao Direito Eleitoral

Desde a sua promulgação em 2014, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) consolidou princípios fundamentais para o uso da rede no Brasil. Fruto de amplo processo participativo e deliberativo, que incluiu audiências públicas, consultas à sociedade civil, especialistas e empresas de tecnologia, o Marco Civil estabeleceu um modelo de responsabilidade dos intermediários que visa garantir a liberdade de expressão e proteger os usuários contra censura privada indevida.

O artigo 19 da referida lei define que os provedores de aplicação somente podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após o recebimento de ordem judicial específica, não tomarem as providências para remover ou tornar indisponível o conteúdo questionado. Trata-se, portanto, de responsabilidade subsidiária e subjetiva, cujo pressuposto central é a omissão quanto ao cumprimento de decisão judicial.

Esse entendimento foi integralmente absorvido pelo Direito Eleitoral. A Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) e diversas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passaram a reproduzir, com as devidas adaptações, esse regime de responsabilização indireta. Em tais normas, a responsabilização dos provedores está condicionada ao descumprimento de decisão judicial e ao conhecimento prévio do conteúdo. Portanto, uma eventual revisão desse modelo pelo STF poderá implicar necessidade de reinterpretação sistêmica de todo o regime jurídico-eleitoral, inclusive em aspectos operacionais e processuais.

Responsabilização Secundária e Proteção à Liberdade de Expressão

A responsabilidade condicionada à ordem judicial prevista no Marco Civil representa um freio institucional importante contra abusos e medidas de remoção arbitrária de conteúdos. Ao exigir que haja decisão do Judiciário com identificação clara do conteúdo a ser retirado, o artigo 19 garante a preservação da liberdade de expressão e o necessário contraditório entre as partes envolvidas. Os provedores, por sua vez, não atuam como censores, mas como agentes responsáveis pelo cumprimento de decisões válidas e proporcionais.

Cabe ressaltar, entretanto, que o próprio Marco Civil prevê exceções em que a responsabilização do provedor de aplicação pode se dar de forma direta e imediata, independentemente de ordem judicial. Trata-se de situações específicas em que o legislador optou por um modelo de responsabilização mais célere e objetivo. É o caso do art. 21, que trata da divulgação não autorizada de imagens ou vídeos com cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado. Nessa hipótese, o provedor responde civilmente caso, após notificação feita pela vítima ou seu representante legal, não promova a indisponibilização do conteúdo, desde que a notificação contenha elementos suficientes para identificar o material e a legitimidade do requerente.

Esse dispositivo exemplifica uma hipótese em que o campo interpretativo é bastante reduzido, pois envolve a violação evidente de um direito de personalidade com forte repercussão na esfera íntima do indivíduo. A exigência de atuação diligente do provedor busca evitar a perpetuação da lesão à intimidade e confere maior proteção à vítima em casos de especial gravidade e urgência.

Aplicabilidade no Direito Eleitoral: Previsões Normativas

A aplicação desse regime ao contexto eleitoral é evidenciada no art. 57-F da Lei nº 9.504/1997 e nos arts. 32 da Res. TSE 23.610/2019 e 23.608/2019. Em todos esses dispositivos, a responsabilização dos provedores só é admissível quando: (i) houver decisão judicial específica; (ii) for comprovado o prévio conhecimento do conteúdo irregular; e (iii) não forem adotadas providências tempestivas para cessar a divulgação da propaganda ilícita.

Tais normas visam assegurar o equilíbrio entre a livre circulação de ideias e a integridade do processo eleitoral. Caso o STF modifique tal entendimento, será necessário revisar não apenas os fundamentos normativos dessas regras, mas também os fluxos processuais de fiscalização e remoção de conteúdo durante as campanhas.

Limites das Ordens Judiciais e Garantias ao Debate Político

O art. 38 da Resolução TSE nº 23.610/2019 é paradigmático ao estabelecer que a atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos na internet deve ocorrer com a menor interferência possível no debate democrático. As ordens judiciais de remoção devem ser fundamentadas, observar os limites técnicos das plataformas e conter a indicação precisa do conteúdo a ser retirado (por URL, URI ou URN).

Essa sistemática assegura que o Judiciário atue como instância garantidora de direitos fundamentais, e não como órgão de controle preventivo de discursos. A responsabilização dos provedores, portanto, não decorre da simples presença do conteúdo, mas de sua persistência indevida após ordem judicial válida.

Conteúdos Impulsionados e a Nova Responsabilização Objetiva

Com a edição da Resolução TSE nº 23.732/2024, passou a existir uma hipótese de responsabilização objetiva das plataformas: o impulsionamento remunerado de conteúdos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados. Nesses casos, os provedores são obrigados a adotar medidas imediatas de interrupção da monetização e apuração do fato, mesmo sem a intervenção judicial prévia.

A medida busca responder a um cenário de crescente uso de inteligência artificial e técnicas de desinformação para manipular o debate eleitoral. No entanto, o conceito de “conteúdo notoriamente inverídico ou descontextualizado” é, por sua natureza, indeterminado e sujeito a interpretações divergentes, o que amplia o risco de decisões unilaterais e de restrições indevidas à manifestação do pensamento político.

Casos de Risco Crítico ao Processo Eleitoral: Art. 9º-E

A resolução também prevê a responsabilização solidária dos provedores em situações de risco extremo à integridade do processo eleitoral, ainda que não haja decisão judicial prévia. São cinco as hipóteses expressamente elencadas:

  1. Divulgação de condutas ou atos antidemocráticos (arts. 296, 359-L, 359-M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal);

  2. Compartilhamento de informações falsas que atinjam diretamente a lisura dos processos de votação, apuração e totalização dos votos;

  3. Ameaças diretas ou incitação à violência contra membros da Justiça Eleitoral e do Ministério Público Eleitoral, ou contra a infraestrutura da Justiça Eleitoral;

  4. Promoção de discurso de ódio com base em preconceito de raça, gênero, religião ou ideologias discriminatórias;

  5. Divulgação de conteúdo manipulado por tecnologias digitais, inclusive IA, sem rotulagem adequada.

Embora tais medidas tenham justificativa legítima, sua aplicação sem mediação judicial pode colocar em risco o contraditório e o controle externo das ações das plataformas.

Oficiamento e Exclusão do Polo Passivo em Representações

Conforme consolidado pelo TSE, os provedores de aplicação ou conteúdo não precisam figurar no polo passivo das representações eleitorais, salvo quando forem diretamente responsáveis pela divulgação. É suficiente que sejam oficiados para o cumprimento das ordens judiciais, conforme o disposto no art. 40, § 4º, da Resolução TSE nº 23.610/2019 e no art. 17, § 1º-B da Res. TSE nº 23.608/2019.

Essa diretriz evita judicializações excessivas e reconhece o papel instrumental das plataformas na execução das decisões judiciais.

Desafios da Jurisdição Internacional: Representação Legal no Brasil

O art. 10 da Resolução TSE nº 23.608/2019 determina que plataformas estrangeiras que operem no Brasil devem indicar representante legal no país. Contudo, a efetividade dessa regra depende da comprovação de que a empresa mantém operação direcionada ao público brasileiro, especialmente com coleta de dados e atividade econômica local.

A exigência tem sido questionada quanto à sua aplicação a empresas sediadas fora do território nacional sem presença formal no Brasil, o que pode gerar conflitos de jurisdição e dificuldades práticas de fiscalização e responsabilização.

Direito de Resposta e Limitações Práticas

Nos casos de direito de resposta, os arts. 30, § 3º, da Res. 23.610/2019 e 32, IV, “d”, da Res. 23.608/2019 estabelecem que a obrigação de veiculação recai sobre o usuário responsável pela postagem. O provedor, que não exerce controle editorial prévio, somente poderá ser compelido a divulgar a resposta se houver identificação do responsável. Caso contrário, limita-se à remoção do conteúdo ou à suspensão da conta, sendo indevida a imposição de obrigação de fazer à plataforma.

Conclusão: Entre o Devido Processo e o Risco de Censura Preventiva

Caso o Supremo Tribunal Federal modifique o entendimento atual e passe a admitir a responsabilização direta dos provedores antes da manifestação judicial, haverá necessidade urgente de reforma normativa para ajustar o sistema jurídico-eleitoral. A insegurança jurídica resultante de tal mudança pode desorganizar os procedimentos de fiscalização, comprometer a isonomia entre os candidatos e estimular a autocensura nas plataformas digitais.

O risco é de que se inaugure um modelo de censura privada preventiva, com as plataformas suprimindo conteúdos por receio de sanções, mesmo nos casos em que o conteúdo não configure ilícito evidente.

O caminho mais equilibrado permanece sendo aquele delineado pelo Marco Civil da Internet e replicado na legislação eleitoral: responsabilização secundária condicionada ao descumprimento de ordem judicial e responsabilização objetiva apenas em situações de monetização de conteúdos previamente considerados ilícitos pelo Poder Judiciário.

Diante da complexidade do tema e da sensibilidade do contexto eleitoral, espera-se que o Supremo Tribunal Federal reafirme os pilares do Estado Democrático de Direito, preservando a liberdade de expressão, o contraditório e a segurança jurídica como fundamentos indispensáveis à democracia brasileira.

Sobre o autor

Alexandre Basílio Coura é mestrando em Ciência Política, pós-graduado em Direito Digital e Compliance e atua como professor e pesquisador nas áreas de Inteligência Artificial, Direito Eleitoral e regulação da internet. Participou da elaboração das normas sobre propaganda eleitoral digital e coordena cursos sobre sistemas eleitorais comparados e liberdade de expressão nas plataformas digitais.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Fazendas de Clicks e a artificialização da autoridade política digital como forma de abuso no uso indevido dos meios de comunicação social.

 




A legislação eleitoral, no que diz respeito à tecnologia, é absolutamente claudicante. Às vezes dá alguns saltos, como ocorreu com a Lei nº 12.034/2009, e às vezes fica estagnada por longos períodos, dependendo de um empurrão para se modernizar.

A propaganda eleitoral stricto sensu, ou seja, aquela pela qual se pode pedir votos, só começará em 16 de agosto de 2024, o que faz com que muitas pessoas reverberem por aí que a campanha eleitoral dura apenas 45 dias. Esse prazo só é verdadeiro para as campanhas analógicas e para aqueles que acreditam que seja necessário pedir o voto. Para os demais, a disputa pelo pleito começou, no mínimo, em 03 de outubro de 2022, dia posterior às últimas eleições.

Isso é fácil de se explicar. Vivemos em uma era de profunda interligação digital entre as pessoas. Todos estamos distantes no máximo 2 ou 3 cliques uns dos outros e os rituais de mídia (Durkheim) nunca foram tão facilmente perceptíveis, muitas vezes disparados pelo simples fato de alguém ter um grande número de seguidores ou por ter tido grande quantidade de expectadores em uma live (transmissão ao vivo).

Inclusive, número de seguidores passou a ser uma das métricas a serem consideradas no juízo de proporcionalidade e razoabilidade utilizado para fins de aplicação e valoração de multas eleitorais (R-Rep nº 060178740 - DF Relator(a): Min. Cármen Lúcia - 16/05/2024). Contudo, esse dado pode ser absolutamente artificial e as pessoas podem estar sendo provocadas a seguir falsos influenciadores, o que, em um primeiro momento, pode ser muito útil para uma campanha eleitoral.

O que já é conhecido no marketing comercial ainda é novidade no mundo do Direito Eleitoral. Sabe-se que no mundo digital somos medidos pela nossa capacidade de influenciar pessoas. Então, se não temos seguidores, somos o equivalente a um indigente digital, não temos nada, ninguém sob a nossa influência. Mas, no mundo digital isso não é um problema. Nada se faz, nada se cria, tudo se copia, inclusive seguidores.

Por meio de fazendas de cliques (Click Farms) como essa do vídeo, é possível iniciar uma campanha eleitoral com 2 anos de antecedência, começando com 1000 seguidores ciborgues (com comportamento ora automatizado, ora manual, falseando uma suposta influência, de forma a enganar os algoritmos) utilizando-se de técnicas de inbound marketing eleitoral, com um filtro específico voltado para a política (atrair, relacionar, converter, defender), atuando para aumentar o número de seguidores apenas para servir de isca para posterior conversão dos seguidores falsos em verdadeiros, após um breve período, fazendo com que alguém desconhecido chegue a milhares de seguidores reais depois de algum tempo.

A cada live, milhares de expectadores são criados apenas para fins de gerar notícias sobre o sucesso do evento. Da mesma forma, compra-se curtidas e até comentários. Tudo isso de forma imperceptível pelas plataformas que já reconheceram ter até 7 vezes em usuários o número de habitantes do planeta terra, ou seja, um número de contas inautênticas que pode chegar a 7 vezes o número de pessoas reais.

Isso até pode ser combatido, mas, a investigação digital é complexa. Depende de bons conhecimentos do advogado, do Juiz, do Promotor e de todos que atuarem nos autos.

Embora haja vedações legais (quase imperceptíveis sob o olhar do leigo, ex: Art. 57-B, § 3º da Lei 9.504/97 – alterar o teor ou aumentar a repercussão de uma propaganda eleitoral, multa de 5 a 30 mil, ou o dobro do valor do gasto quanto ultrapassar o teto da multa, bem como o abuso no uso indevido dos meios de comunicação) não se vê representações sobre o assunto, em razão do quase absoluto desconhecimento sobre meio digital e suas artimanhas.

Enquanto isso, continua a Justiça Eleitoral combatendo outdoors e buscando por palavras mágicas como se elas fossem convencer alguém a votar ou deixar de votar, quase que comparadas às palavras gatilho da hipnose.

De outro lado, cidadãos da aldeia global são atraídos por falsos influenciadores para serem conduzidos até as urnas por meio de artifícios bem elaborados de manipulação digital. Esses, habilidosos novos políticos digitais, seguem tranquilos e sem incômodos.


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

As novas tecnologias, as pesquisas eleitorais e a desinformação nas eleições 2022.

Prof. Alexandre Basílio.


Venho falando aos quatro cantos sobre a impossibilidade de se atuar juridicamente em matéria eleitoral sem o conhecimento básico de marketing digital, tecnologia e, claro, Direito Eleitoral. Mas, por que esses conhecimentos são tão importantes aos juízes, promotores, advogados e servidores da Justiça Eleitoral? Vou tentar convencê-lo nas próximas linhas.

Atualmente, entre os maiores fornecedores de serviços das campanhas eleitorais estão duas bigtechs. Por meio da venda dos serviços de impulsionamentos de conteúdos, o Facebook e Google lucraram mais de 100 milhões em 2020. A expectativa é de que esse valor seja multiplicado por 2 ou 3 em 2022. Há uma série de formalidades sobre os impulsionamentos de conteúdos eleitorais que vão muito além das questões jurídicas. Reconhecer, por exemplo, os detalhes de um impulsionamento de modo a se garantir um eventual direito de resposta, nos mesmos moldes da ofensa, faz parte do papel do judiciário e está previsto em lei. Para isso, ele precisa ser provocado e, ainda mais importante, precisa entender o problema para que possa decidir adequadamente. 

Situação interessante e que vem se tornando cada vez mais comum é a prática de se comprar seguidores para os perfis e páginas da campanha nas mídias sociais. Contudo, essa compra não é em benefício próprio e sim para o adversário político.

 - Mas, como assim para o adversário? 

- Pois é, se você não sabe a razão, já pode perceber o quanto o conhecimento do marketing digital e do funcionamento desses novos meios de comunicação é importante.

Ocorre que qualquer um que comprar seguidores pode ser punido pelas plataformas. Essa punição é objetiva. Dessa forma, se eu quiser prejudicar o meu adversário, inutilizando suas mídias sociais, em especial, o Instagram, basta comprar alguns milhares de seguidores para o perfil dele, o que pode ser feito desembolsando valores a partir de 200 reais, de forma anônima, a partir de vários sites. 

Com esse comportamento, de forma quase que automática, a conta do adversário receberá milhares de novos seguidores de uma só vez e, por ser uma atividade suspeita, poderá sofrer uma punição da plataforma, conhecida no meio do marketing como shadowbanning, deixando, a partir de então, de entregar o conteúdo aos seus seguidores. Inutiliza-se o perfil do Instagram do candidato e, pasmem, não há refúgio na Justiça Eleitoral para o problema, pois desconsiderando-se o art. 57-B, §3º da Lei 9.504/97, ou até mesmo o art. 248 do Código Eleitoral, vários julgadores já alegaram, por desconhecimento, tratar-se de uma relação de consumo, de competência da Justiça Comum. Será? Há precedentes, infelizmente. 

Para muito além das compras de seguidores, que se tornaram comuns nas eleições de 2022, há inúmeros outros problemas que dependem do conhecimento do marketing e da tecnologia. Sobre a tecnologia, cito o problema relacionado aos disparos em massa, por meio dos programas de mensageria. O modus operandi é sempre o mesmo. Uma empresa tem acesso a uma lista de dados vazados de eleitores brasileiros de qualquer localidade do país. Essa lista é composta pelo nome completo, CPF, endereço, data de nascimento etc. De posse desses dados é possível adquirir números de celular pré-pagos, requisito para se criar contas no Whatsapp ou no Telegram.

Imediatamente após adquirir o chip de celular, são criadas contas nesses programas de mensageria e tem início o plano para disseminar a narrativa desinformativa sobre algum adversário.

Neste exato momento, isso está acontecendo em vários estados brasileiros. A dúvida que sempre surge é: como investigar e provar tais fatos? A resposta é que não é possível fazer isso apenas com o conhecimento jurídico. É necessário que o advogado, membro do MP, os servidores e os juízes entendam o básico sobre tecnologia. 

Isso porque é necessário entender como toda essa tecnologia funciona, de forma a encontrar as provas adequadas que façam a ligação entre candidato prejudicado e o adversário ousado. Para isso, é necessário convencer o juiz quanto à necessidade de vários pedidos de quebras de sigilo de dados telemáticos, muitas vezes contra as vítimas que tiveram seus dados usados no ilícito eleitoral e, a depender da compreensão dos advogados, servidores, juízes e membros do MP sobre endereços IPv4, IPv6, Nat, CGNAT, cadeia de custódia das provas e mais alguns detalhes jurídicos, talvez ter sucesso na empreitada, que já terá se transformado em uma odisseia sem prazo para terminar, quando não se conhece os atalhos que só os hackers têm acesso.

Outro problema que tangencia a seara jurídica, mas que sobre o qual é necessário algum conhecimento básico é a estatística relacionada às pesquisas eleitorais. Não vamos aqui, nestas breves reflexões, tentar responder o porquê de em uma mesma semana haver resultados de pesquisas informando que um candidato será eleito no primeiro turno e, ao mesmo tempo, que está atrás em 5 pontos percentuais daquele que seria o segundo colocado. Esses são problemas mais profundos, que precisam de uma análise mais demorada e complexa.

Se não podemos falar sobre inferência, ao menos podemos falar sobre amostra.

 - Mas, o que é uma amostra do ponto de vista estatístico? 

- Podemos definir, de forma bem vulgar, que a amostra é uma parte representativa do todo. Nesse caso, precisamos entender que só é possível uma pesquisa eleitoral ser extrapolada para o todo, no processo que chamamos de inferência estatística, quando a amostra é bem feita. Mas, o que é uma amostra bem feita?

Vamos imaginar que um determinado estado brasileiro tenha 2 milhões de eleitores. Desses, 53% são mulheres e 47% são homens. Há ainda uma divisão importante sobre nível educacional, faixa de renda e idade.

Sobre o nível de escolaridade dos eleitores desse estado, temos os seguintes dados oficiais, que podem ser retirados do site do TSE ou do IBGE :

Formação: Dados apresentados – TSE 2022


Analfabeto / Lê Escreve

13,50%

Ensino Fundamental Completo/ Incompleto

26,80%

Ensino Médio Incompleto/Completo

44,20%

Ensino Superior Completo/Incompleto

15,50%

Total

100,00%


Sobre a faixa de renda, algo como:

Faixa de Renda

Percentual

Até R$ 1.212,00

41,70%

Mais de R$1.212,00 a R$3.636,00

44,30%

Mais de 3.636,00 a 6060,00

10,00%

Acima de R$6.060,00

4%

Total:

100%


Sobre a idade, algo como:

Idade Oficial

Percentual

16 a 17 anos

2,22%

18 a 24

16,79%

25 a 34

23,61%

35 a 44

21,75%

45 a 59

21,73%

Mais de 60

13,9%



A Resolução TSE nº 23.600 de 2019, utilizada para as campanhas eleitorais de 2022, exige que todas as pesquisas eleitorais devam ser registradas 5 dias antes de sua divulgação. A resolução exige ainda vários dados formais, para que seja garantido aos interessados o direito de fiscalizar o processo seguido para se atingir aqueles resultados divulgados pela pesquisa, de forma que se possa conferir se o instituto responsável pela pesquisa cumpriu requisitos básicos, para que não sejam as pesquisas transformadas em ferramentas de desinformação, legitimadas pela Justiça Eleitoral.

Dito isso, podemos voltar a falar sobre as amostras. Quando um instituto registra uma pesquisa no Pesquele do TSE1, ele precisa preencher o relatório sobre o projeto da pesquisa. Ainda não é um relatório sobre o que foi pesquisado. É apenas o que ele pretende fazer, exatamente como o nome diz: um projeto do trabalho.

Nesse projeto, alguns dados são obrigatórios e estão previstos no art. 2º da Res. 23.600/2019. Entre eles, talvez o mais importante seja sobre a formação da amostra. O TSE exige que no projeto conste o plano amostral e também a ponderação utilizada, senão vejamos:


Art. 2º, IV - plano amostral e ponderação quanto a gênero, idade, grau de instrução, nível econômico da pessoa entrevistada e área física de realização do trabalho a ser executado, bem como nível de confiança e margem de erro, com a indicação da fonte pública dos dados utilizados;


Registrar o plano amostral significa dizer que, no processo de criação da minha amostra, denominado amostragem, vou selecionar um pequeno percentual que possa representar o todo. Assim, mesmo que a população seja composta por 2 milhões de pessoas, com uma pequena parcela representativa do todo, algo em torno de 2 mil pessoas entrevistadas, vou conseguir inferir o comportamento eleitoral e, por consequência, o possível resultado do pleito.

Mas, isso só é possível se os meus 2 mil entrevistados tiverem características semelhantes ao todo, devendo ser composta, no nosso exemplo, por 47% de homens, 53% de mulheres, com nível educacional, idade e renda também semelhantes, conforme dados mencionados anteriormente.

Não é incomum ver pesquisas que apresentam plano amostral informando que sobre o nível de instrução vão formar sua amostra com apenas dois estratos: 1º) Até Ensino Médio completo 83%. Com ensino Superior 17%. Sobre o nível econômico: economicamente ativo 58%; Não Economicamente ativo 42%.

Uma vez que a legislação eleitoral não traz exigências mais detalhadas sobre o plano amostral, em tese, não estaria ilícito tal projeto, desde que o pesquisador informe a ponderação que vai utilizar, ou seja, quando não conseguir completar 17% de pessoas com nível superior, qual peso vai dar para os que ele encontrou.

Contudo, por outro lado, do ponto de vista estatístico, fica muito fácil montar uma amostra enviesada para um resultado pretendido. Por exemplo, sobre o nível educacional, para preencher os 83% da minha amostra de 2.000 mil pessoas com formação até nível médio completo, conforme exemplo acima, eu poderia entrevistar apenas analfabetos e, ainda assim, estaria de acordo com a amostra, uma vez que o plano amostral não exibiu adequadamente o percentual que buscaria em cada estrato possível, conforme dados fornecidos pelo TSE, por exemplo:

Formação: Dados apresentados – TSE 2022

Analfabeto / Lê Escreve

Ensino Fundamental Completo/ Incompleto

Ensino Médio Incompleto/Completo

Ensino Superior Completo/Incompleto


O pesquisador juntou analfabeto, lê e escreve, ensino fundamental completo, incompleto e ensino médio incompleto e completo, tudo isso em apenas um estrato. Não há divisões. Talvez os entrevistados sejam todos compostos por eleitores apenas com nível médio completo ou talvez todos sejam analfabetos. 

Do outro lado, os demais 17%, precisam ser compostos por pessoas com nível superior completo ou incompleto. Não preciso dizer o quanto eu poderia enviesar os resultados coletando 83% de analfabetos e 17% de pessoas sem curso superior completo. Essa amostra seria representativa do todo? Óbvio que não. Nesse caso, a única solução seria solicitar acesso aos dados internos da pesquisa e verificar se nos formulários preenchidos com os dados dos 2 mil entrevistados havia uma boa divisão entre os níveis educacionais ou se houve concentração para o resultado pretendido.

Sobre o nível econômico, da mesma forma. Sendo clara a identificação das classes menos favorecidas a uma determinada ideologia, seria simples direcionar os resultados da pesquisa de forma a favorecer esse partido. Reparem que existem ao menos 4 faixas de renda definidas pelo IBGE:

Até R$ 1.212,00

41,70%

Mais de R$1.212,00 a R$3.636,00

44,30%

Mais de 3.636,00 a 6060,00

10,00%

Acima de R$6.060,00

4%

Total:

100%


Se no meu projeto de pesquisa eu disser que vou dividir esse contingente, que representa a realidade da sociedade, em apenas dois grupos, economicamente ativo 58%; não Economicamente ativo 42%. Significa dizer que, das 2 mil pessoas, vou entrevistar 1.160 pessoas economicamente ativas e 840 não economicamente ativas. Contudo, o conceito de economicamente ativo é literal. Eu posso ser economicamente ativo e receber um salário, ou posso receber acima de 6 mil reais. É essencial conhecer quantas pessoas de baixa ou alta renda foram entrevistadas e não apenas saber se eram economicamente ativas ou não.

Para enviesar tal amostra, sem chamar atenção, bastaria que fossem entrevistadas 1160 pessoas que recebem até 1.212 reais, todas economicamente ativas e outras 840 desempregadas. Dessa forma, por um lado, cumpro o plano amostral, por outro, deixo os resultados absolutamente enviesados.

O contrário também é possível. Bastaria investigar 1160 pessoas com renda acima de 6 mil reais e teremos um resultado tendencioso.

Assim, percebe-se que enviesar resultados de uma pesquisa não é tarefa complexa. A falta de fiscalização por parte do Ministério Público, bem como a ausência de atuação do TSE e dos Tribunais que não verificam, por força do art. 10, 1º2 da Resolução 23.600/2019, sequer os requisitos básicos para o projeto da pesquisa contribuem para que elas se transformem em ferramentas de desinformação legitimadas pela Justiça Eleitoral.

Ademais, mesmo quando os requisitos são claros, a exemplo do Art. 2, §7º3, que reconhece que os dados do projeto da pesquisa, apresentados 5 dias antes de sua divulgação, são meramente informativos, diferenciando-se dos dados efetivamente executados, razão pela qual, o responsável pela pesquisa deve, até o dia seguinte após a data em que a pesquisa possa ser divulgada, complementar o projeto da pesquisa, informando a amostragem que foi efetivamente considerada, inclusive com percentuais de gênero, instrução, renda, idade e local das entrevistas. Ou seja, uma coisa é o projeto, outra coisa é o realizado.

Perceba a clareza do texto:

§ 7º a partir do dia em que a pesquisa puder ser divulgada e até o dia seguinte, O REGISTRO DEVERÁ SER COMPLEMENTADO, SOB PENA DE SER A PESQUISA CONSIDERADA NÃO REGISTRADA, com os dados relativos:

(…)

Iv - em quaisquer das hipóteses dos incisos i, ii e iii deste parágrafo, ao número de eleitoras e eleitores pesquisadas(os) em cada setor censitário e a composição quanto a gênero, idade, grau de instrução e nível econômico DAS PESSOAS ENTREVISTADAS NA AMOSTRA FINAL DA ÁREA DE ABRANGÊNCIA DA PESQUISA ELEITORAL.


A legislação considera a ausência da complementação dos dados tão grave que determina que a pesquisa sem tais dados seja considerada não registrada. Ainda assim, pasmem, há juízes que entendem, cotidianamente, que os dados do projeto são suficientes, indiferente se são reais ou mera ficção, contribuindo para o uso das pesquisas como ferramenta de desinformação e, o pior, legitimados pela própria Justiça Eleitoral.

Outros problemas comuns são as pesquisas autofinanciadas, que rotineiramente funcionam como verdadeiros leilões (quem contribui para a instituição pesquisadora fica bem nos resultados), as notas fiscais, com mesmo valor e mesma numeração, utilizadas dezenas de vezes pela empresa para compor seu projeto de pesquisa, o número de entrevistados, margem de erro e nível de confiança absolutamente descontextualizados quanto ao teorema central do limite e diversos outros ilícitos que deveriam saltar aos olhos de quem de direito, o que não acontece por falta de conhecimentos básicos sobre o assunto.

Atuar na seara eleitoral tornou-se tão desafiador quanto possível. Fica a mensagem mais uma vez: aquele que imaginou um dia que poderia atuar no judiciário estudando apenas o Direito, esqueça. Agora é necessário o conhecimento de marketing, tecnologia, direito e, claro, estatística básica.

O Professor Alexandre Basílio é graduado em Direito e em Ciência Política e já cursou várias cadeiras de estatística nos cursos de Tecnólogo em Processamento de Dados, Administração de Empresas, Ciência da Computação, Engenharia da Computação e no Mestrado em Ciência Política. Tem formação em Eletrônica, em Processamento de Dados, com registro no CRE-MG, é graduando em Engenharia da Computação e em Redes de Computadores, com formação prevista para 2024, cursa Mestrado em Ciência Política na Universidade de Lisboa, em Portugal, é pós-graduado em gestão de Riscos e Cibersegurança, em Direito Digital e em Direito Eleitoral. Nas horas vagas faz Pentest e Bug Bounty, buscando falhas em sistemas informatizados. Curte Marketing digital e já lançou infoprodutos, utilizando-se dos recursos de compra de tráfego/impulsionamento de conteúdos.

2§ 1º A Justiça Eleitoral não realiza qualquer controle prévio sobre o resultado das pesquisas, tampouco gerencia ou cuida de sua divulgação. (Incluído pela Resolução nº 23.676/2021)

3Art. 2º § 7º A partir do dia em que a pesquisa puder ser divulgada e até o dia seguinte, o registro deverá ser complementado, sob pena de ser a pesquisa considerada não registrada, com os dados relativos:


sábado, 2 de abril de 2022

Vaquinhas Eleitorais para 2022

 Um pequeno resumo sobre a possibilidade do CrowdFunding, mais conhecido como vaquinha eleitoral. 



Clique  no link abaixo para interagir com o Mapa Mental e não deixe de seguir o Prof. Basílio nas mídias sociais: @prof.alexandrebasilio


Clique aqui: https://bit.ly/Vaquinha2022




segunda-feira, 28 de março de 2022

O caso Lollapalooza.

Observância à Lei ou Censura Prévia?
Por Alexandre Basílio
Instagram: @prof.alexandrebasilio

             

No último final de semana, com a ocorrência do evento denominado Lollapalooza, o show principal ficou por conta da Justiça Eleitoral, que determinou obrigação de não fazer aos responsáveis pelo evento, bem como aos artistas que ali se apresentariam.

A repercussão foi imediata e a partir disso houve uma série de acusações de uma Justiça Eleitoral parcial, defendendo o candidato e, por outro lado, de censura prévia sobre a liberdade de manifestação artística dos famosos grupos musicais que se apresentariam.

Para entender a celeuma, é necessário a compreensão de 22 anos de jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a respeito de propaganda eleitoral antecipada, bem como sobre a capilaridade e alcance de conteúdos eleitorais divulgados pro qualquer meio. Além disso, é ainda mais importante, entender os pedidos da petição inicial apresentada pelo PL, bem como os limites da decisão proferida liminarmente pelo Min. Raul Araújo.

Dessa forma, passo a tecer alguns comentários sobre o caso concreto. Vejamos.

A primeira inverdade que vem sendo divulgada é que a decisão foi tomada com fundamento na atuação de um dos participantes do evento, a Pablo Vittar, que durante um momento do show teria desfilado com uma bandeira/toalha com o rosto de um candidato, feito o sinal de L com uma das mãos e gritado “Fora Bolsonaro”. De fato, a Pablo fez exatamente isso. Mas o que aconteceu no show foi muito além disso, conforme consta na petição inicial proposta pelo PL sobre a manifestação de outros artistas, a exemplo do seguinte trecho da peça vestibular:

De igual sorte, sob responsabilidade das representadas, a cantora internacional Marina incide em propaganda eleitoral antecipada, na modalidade negativa, quando incita os presentes a proferirem palavras de baixo calão contra o pré-candidato filiado à legenda representante, notadamente quando sua fala de inicia com – “eu estou cansada dessa energia, foda-se Bolsonaro”, a depreender que o pré-candidato de alguma forma representa algo de negativo para ela, e, consequentemente, para sua legião de fãs.

Ao final da fala da cantora Marina, o público, estimulado por sua atuação, grita em coro: “Hei, Bolsonaro, vai tomar no cu”.

Além disso, o músico Emicida também incita o público dizendo: “3): Se você tem de 15 a 18 anos, tire a porra do título de eleitor”. “4) Bolsonaro, vai tomar no cu”.

Em que pese ter havido duras manifestações contrárias a um candidato à releição presidencial no país, não se pode dizer que tenha havido propaganda eleitoral antecipada. Não há pedido de voto. Contudo, houve manifestações negativas com pedido de não voto, ao dizer “Fora Bolsonaro”, por exemplo, ou, “Eu estou cansada desse energia, foda-se Putin, foda-se Bolsonaro”, as quais repercutiram fortemente pelas redes sociais, extrapolando os limites do evento.

Nesse caso, poderia a Justiça Eleitoral controlar os limites do evento censurando a fala dos artistas? A resposta imediata é um sonoro não.

Deveria a Justiça Eleitoral aguardar a continuidade das manifestações de cunho político até que elas se transformassem em propaganda eleitoral antecipada explícita positiva ou negativa, gerando um prejuízo à normalidade do pleito, sem possibilidade de se garantir um “statu quo ante”? Aqui também podemos emitir um sonoro, Não.

Isso porque a Justiça Eleitoral tem o dever de disciplinar o período eleitoral e, agindo com poder de polícia, pode emitir avisos sobre comportamentos que estão margeando a legalidade. Nesse caso, vejamos o que pede a inicial do Partido Liberdade:

“4. Do pedido

Ex positis, requer:

a) A concessão da tutela de urgência, oficiando-se de imediato a organização do evento Lollapalooza, para que impeça a realização de qualquer tipo de propaganda eleitoral irregular antecipada ou negativa em favor ou desfavor de qualquer candidato, sob pena de multa por descumprimento, apuração do crime, e sem prejuízo de que a Justiça Eleitoral, em poder de polícia, impeça a continuação do evento;

b) Sejam as representadas notificadas para, querendo, apresentarem defesa;

c) Ao final, seja reconhecida a prática do ilícito, condenadas as representadas à pena do art. 36, §3º, LE, em patamar máximo, dada a gravidade e o poder econômico dos envolvidos.

Brasília, 26 de março de 2022”  Não há grifos no original.

Observem que o pedido liminar, previsto no ponto esboçado na alínea a, diz respeito a oficiar a organização do Lollapalooza para que essa respeite os limites da legislação eleitoral. Não há pedidos sobre censura às manifestações políticas lícitas. O pedido é específico e diz respeito à observância da norma posta no art. 36-A, da Lei 9.504/97, que dispõe sobre a expressa vedação de se fazer propaganda eleitoral antecipada positiva ou negativa por meio do pedido explícito de voto ou não voto para um dos pretensos participantes do pleito eleitoral vindouro.

Nesse ponto, é importante ressaltar que não há direitos absolutos em nosso estado democrático de direito. Nem sequer o direito à vida. Os artistas devem o mesmo respeito à legislação eleitoral que as mídias sociais. Não é por acaso que, ao desrespeitar a legislação, o Telegram sofreu uma ordem de suspensão de suas atividades, tudo isso por não bloquear conteúdos de alguém que, de forma contínua e recalcitrante, desrespeitava a legislação eleitoral.

E o que fez o Ministro Raul Araújo ao se deparar com os pedidos da petição inicial? Fez exatamente aquilo que prevê o art. 41, §2º da Lei 9.504/97, senão vejamos:

§ 2º O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.

Para inibir, ou seja, desestimular ou evitar que ocorra uma prática ilegal, os Juízes Eleitorais se utilizam do poder de polícia. Contudo, não podem dizer: não fale isso, ou não apresente esse show, ou não usem o nome de um determinado candidato. Mas, podem dizer: não cometa ilícitos eleitorais do tipo propaganda eleitoral antecipada positiva ou negativa, pois, se o fizer, dada a conjuntura do evento, será responsabilizado. Vejamos como o Ministro Raul Araújo redigiu sua decisão:

“Nestes termos, considerando a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, defiro parcialmente o pedido de tutela antecipada formulada na exordial da representação, no sentido de prestigiar a proibição legal, vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos músicas que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento, a ser suportada pelos representados, até ulterior deliberação desta Corte.

Publique-se. Intime-se com urgência.

Brasília, 26 de março de 2022.” Sem grifos no original.

Ao ler a Representação apresentada pelo Partido ao TSE e, em seguida, analisando a decisão detidamente, percebe-se que o Ministro, em análise superficial, cumpriu o mandamento legal. Decidiu, com os cuidados que a lei lhe impõe, inibir a possibilidade de ocorrência de atos ilegais, para, posteriormente, na decisão de mérito, analisar os fatos apresentados na inicial de forma mais detida e aprofundada.

Impossível, em uma análise jurídica, entender como censura aos artistas o fato de se exigir o cumprimento do que prescreve a lei.

Claro, para os incautos que se posicionaram baseado no "ouvi dizer", sem ler a inicial e sem analisar a decisão proferida pelo TSE, inclusive considerando seu alcance, há que se acreditar ter havido censura. Inclusive, a maior parte dos que se posicionaram desconsideram que o próprio TSE tem pacífica jurisprudência no sentido de que configura propaganda eleitoral antecipada irregular, não apenas o pedido explícito de voto, mas, também, o conteúdo eleitoral que alcance grande capilaridade, por meio proscrito em período eleitoral, calçado em grandes investimentos financeiros.

Nesse sentido, temos várias decisões desde 2018, para citar como exemplo, o Agr-AI 924, O Resp 4346, bem como os Resp 0600227-31 e o 0600337-30. Todos eles são pacíficos em prescrever que, para além do mero conteúdo, de forma não cumulativa, configura propaganda eleitoral antecipada ilícita, (i) a presença de pedido explícito de voto; (ii) a utilização de formas proscritas durante o período oficial de propaganda; ou (iii) a violação ao princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos.

Dessa maneira, entendo, por fim, que a decisão do TSE está alicerçada nos fundamentos criados pela própria Corte eleitoral, bem como pela legislação eleitoral, longe de poder ser considerada censura prévia às manifestações artísticas.

Se há um remédio para o problema, é a defesa do Novo Código Eleitoral, o qual resolve de forma contundente esse e outros problemas, ao apresentar conceitos claros do que vem a ser propaganda eleitoral positiva, negativa, antecipada lícita e antecipada ilícita, critérios mínimos de aplicação da legislação, que hoje nos faltam.




sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

 

PROPAGANDA POLÍTICA IMPULSIONADA E A REMORIZAÇÃO DOS ANÚNCIOS.

*Alexandre Basílio

instagram: @prof.alexandrebasilio




Você já deve ter assistido um daqueles documentários sobre tubarões caçando suas presas e deve ter notado que há sempre alguns pequenos peixes presos a eles, de carona sendo transportados pelos oceanos. Aquele peixe se chama rêmora e é um conhecido caso de comensalismo na natureza.

Mas, qual é a relação disso com as propagandas eleitorais impulsionadas? Para melhor compreensão, precisamos entender como funciona o sistema de impulsionamento de alguns buscadores e plataformas de compartilhamento de vídeos, onde o fenômeno ocorre com maior frequência.

Embora transparente para os usuários, há um frenético movimento nos bastidores dos navegadores de internet, bem como nos aparelhos móveis enquanto se usa a internet. Antes mesmo de o visitante abrir o conteúdo que busca, há um leilão de sua atenção, que, a partir de dados pré-armazenados sobre cada um de nós, vende aos anunciantes a nossa atenção pelo maior preço de lance, disparando à nossa vista a propaganda adequada para aparecer nos primeiros resultados das nossas buscas ou antes, durante ou depois do vídeo que escolhemos assistir.

A exibição de anúncios adequados ao gosto de cada um dos usuários foi a forma que as plataformas digitais encontraram para auferir grandes lucros vendendo a atenção de quem usa seus serviços, ditos gratuitos. Não é por acaso que se diz: “se o serviço é gratuito, o produto é você”.

A ideia de entregar anúncios aos usuários não ficou estanque, presa ao mundo dos negócios. Atualmente ela é considerada a menina dos olhos dos candidatos brasileiros. Só no ano de 2020 houve um total de 102 milhões de reais gastos em propaganda eleitoral impulsionada nas mídias sociais, dados divulgados pelo sistema de contas eleitorais do TSE.

Em que pese todo o investimento, é muito difícil para um candidato desconhecido ou ansioso por levar uma informação qualquer aos eleitores convencê-los de procurar por seu nome nos buscadores ou nas plataformas de vídeos. Aí é que entra a remorização dos anúncios.

A técnica é simples e para exemplificar vamos imaginar que o candidato a prefeito, João das Couves, quer muito levar sua propaganda a todos os eleitores do município. Comprando anúncios nas mídias sociais, ele tem a pretensão de que, todas as vezes que alguém procurar por determinados termos no buscador, surgirá seu nome entre as primeiras opções. O objetivo é que aconteça o mesmo nas plataformas de vídeo.

Em pouco tempo, João das Couves descobre que essa não é uma tarefa fácil. Por mais que ele tente, os relatórios demonstram que sua campanha não deslancha e os acessos ao seu conteúdo continuam estagnados, sem obter o alcance esperado. Contudo, ao mesmo tempo, João das Couves percebe que o candidato à reeleição, Zé do Bar, está com toda pompa. Tudo que ele publica gera excelentes resultados.

João das Couves tem então uma ideia ousada. Que tal pegar carona no sucesso do Zé do Bar e mostrar a minha propaganda sempre que os eleitores realizarem uma busca pelo nome dele?

Tal qual a rêmora, João das Couves, é incapaz de alcançar suas presas, por isso pega carona no sucesso do Zé do Bar e, por meio desse comensalismo, passa a alimentar-se dos seus eleitores.

A técnica é simples. Quando João das Couves contrata o impulsionamento de suas propagandas, ele precisa informar quais palavras, acaso buscadas, levarão os usuários às suas propagandas. É nesse momento que, em vez de colocar palavras relacionadas ao seu trabalho, usa o trabalho do Zé do Bar para se beneficiar.

Saindo da explicação lúdica utilizada para garantia da compreensão, podemos citar o caso real dos autos, julgados pelo TSE, de números 0601500-19.2018.6.00.0000 e 0601531-39.2018.6.00.0000. Em ambas as situações, determinado candidato usou como palavra-chave o nome do adversário. Sempre que algum eleitor buscasse por A, surgiriam as propagandas de B, tentando induzir o eleitor a seguir por outro caminho e se beneficiando, de forma parasitária, do prestígio do adversário.

Ao ser levado ao TSE, os Ministros analisaram o caso e consideraram tão somente os aspectos formais da contratação do impulsionamento: “desde que o conteúdo não seja negativo e que preencha os requisitos formais, está tudo bem”, disseram os membros da corte.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ, tem posição diametralmente oposta, desde 2016. Nos autos do Recurso Especial nº 1.606.781- RJ, o Ministro Moura Ribeiro, assim ementou sua decisão:

RECURSO ESPECIAL. PROPRIEDADE INDUSTRIAL. MARCA. USO INDEVIDO. CLIENTELA. DESVIO. CONCORRÊNCIA DESLEAL CARACTERIZADA. DEVER DE REPARAÇÃO. TUTELA INIBITÓRIA. ATOS CONTRÁRIOS À LEI. SUSTAÇÃO.

Apesar de o TSE não lidar com propriedade industrial e direito de marca, como faz o STJ, é importante lembrar que o art. 18 do Código Civil é taxativo em vedar o uso de nome alheio em propaganda comercial. Sim, eu sei que o nome, nesses casos, é apenas o meio para se alcançar o objetivo e não a apresentação da propaganda em si.

Contudo, ainda assim, esse uso parasitário, por comensalismo, do nome ou de projetos de adversários como palavra-chave para direcionar os eleitores a um conteúdo político não deve ser considerado lícito. Isso porque a cada contato indesejado que se faz com um conteúdo qualquer na internet gera várias relações algorítmicas que são criadas entre usuário e perfil/página responsável pelo conteúdo, fazendo com que aquele usuário continue, posteriormente ao acesso indesejado, recebendo os informes sobre o candidato rêmora.

Aliás, fazer provas de que isso está acontecendo é um desafio a parte, pois, essas informações sobre o ilícito só podem ser encontradas por profissionais do Direito que estejam digitalmente qualificados a atuar neste maravilhoso mundo novo.

Parece que teremos grandes desafios pela frente.

*Alexandre Basílio é professor de Direito Eleitoral, de Direito Digital, bacharel em Direito, bacharel e mestrando em Ciência Política e Consultor em Cibersegurança.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

A Jordânia e o Distritão

Dando continuidade à acalorada discussão sobre o famigerado sistema Distritão, ou, mais tecnicamente dizendo, o Sistema Eleitoral de Voto Único e Intransferível, busquei informações sobre países que supostamente o utilizavam para entender melhor a mecânica por trás do método, também busquei pelos resultados das últimas eleições nesses países, pois, de fato, os manuais de Ciência Política não conseguem acompanhar as reformas eleitorais de democracias incipientes, ou no nosso caso, talvez insipiente mesmo. 

Descobri que não é correto dizer que a Jordânia utiliza o sistema Distritão, fato alardeado por muitos especialistas na mídia e pelos artigos científicos recentemente publicados. Vamos aos detalhes. 

 Em 1957, o rei da Jordânia (sim, a Jordânia é uma monarquia na qual o Rei tem amplos poderes legislativos e executivos) decretou lei marcial. O país ficou sem eleições até 1989, quando os partidos puderam voltar a existir. Logo na primeira eleição (por meio do voto em bloco, sistema eleitoral inglês do pós-guerra), o partido islâmico ganhou 20 das 80 cadeiras.

O rei, insatisfeito com esse resultado e buscando reduzir o poder dos partidos, alterou o sistema eleitoral, em 1993, para um sistema chamado por eles de (al sawt al-wahid), em bom português algo como “um homem, um voto”, mas que a matemática leva a concluir que seja o tal Distritão. Feito isso, inúmeros boicotes ocorreram em todas as eleições entre 1993 a 2015 e várias foram as modificações eleitorais, inclusive o retorno do sistema de 1989 para o pleito de 2013. 

 Influenciado pelo levante popular – primavera árabe -, o rei buscou, desde 2011, melhorar o sistema eleitoral e garantir maior representatividade, tendo em vista que o Distritão concentrava poder nas mãos de poucos e era uma das razões das constantes revoltas no país. Ademais, embora o país registrasse 58% de eleitores do sexo feminino, por meio do Distritão, nunca eram eleitas mulheres, nem tampouco as minorias cristãs e de outros grupos tribais minoritários. 

 Dessa forma, visando reduzir as manifestações e melhorar a proporcionalidade do sistema, a partir de 2013, o rei Abdullah II alterou a forma de conversão de votos em cadeiras para a Câmara dos Deputados. Criou 15 cadeiras exclusivas para as mulheres, 9 para cristãos e outras cadeiras preferenciais para grupos religiosos minoritários. Além disso, das 130 cadeiras, 27 passaram obrigatoriamente a ser eleitas por meio do sistema proporcional (quota Hare), podendo as mulheres concorrer no grupo geral, ou no grupo de cadeiras reservadas, ao mesmo tempo. 

 Em 2016, houve nova reforma eleitoral visando as eleições daquele ano. Buscando ainda superar a reduzida representatividade das minorias, gerada pelo sistema Distritão, Abdulla II abandonou de vez o método majoritário e criou um sistema de candidaturas por meio de listas, no qual é possível o uso de 3 sistemas eleitorais diferentes, utilizados em ao menos 8 dos 23 distritos. Nos demais distritos, usa-se um sistema proporcional de listas abertas com voto múltiplo e, ainda, o sistema “best-loser” para as mulheres (a mulher não eleita, mas que tenha alcançado a melhor votação, leva a vaga em razão do assento preferencial). 

 Com isso, nas eleições de 2016, 20 mulheres foram eleitas, 5 além das cadeiras reservadas para elas. O partido islâmico conseguiu boa representatividade e arrefeceu sua insatisfação. O país ainda enfrenta sérios problemas políticos. Embora tenha melhorado a classificação do seu nível de democracia de “authoritarian” para “partly free”, a Câmara Alta e o primeiro-ministro continuam sendo indicados pelo rei, não havendo eleições para Senadores. Por isso, não sabemos quando será a próxima vez que o rei dissolverá o congresso e determinará novas regras. 

 Por ora, se o Brasil vier a adotar o Sistema “Distritão puro”, estará alguns anos atrás até mesmo da Jordânia, que agora utiliza sistema proporcional para suas eleições parlamentares. 

 Como comparação entre os países que ainda usam o sistema de voto único não transferível, temos o Afeganistão, um país que vive um sistema ditatorial e ainda sofre com as ameças do Talibã sobre o eleitorado, que pune vilarejos do interior do país com a perda de um dedo da mão caso sejam encontrados com a marca da tinta indelével usada nas eleições. Segundo a Freedom House, a democracia afegã recebeu nota média de 2,55 pontos, em razão do baixo pluralismo político de seu processo eleitoral. 

 Temos ainda as Pitcairn Islands (um amontoado de rochas perdidas na imensidão do pacífico) que atualmente tem 56 habitantes, Vanuatu, com 200 mil habitantes e o Kuwait, uma monarquia constitucional semi-democrática que na prática vive um autoritarismo do Emir Sabah Al-Sabah, cuja família mantém o controle do país desde 1752, por meio da dinastia Al-Sabah. 

 Enfim, o Brasil discute o uso de um sistema utilizado apenas em países autoritários ou incompatíveis em dimensão com uma das sete maiores economias do mundo, cuja pontuação no índice democrático alcança 6,90 pontos, limitado a evoluir apenas em razão da baixa cultura política do seu povo, cultura essa que foi pontuada em 3,75 pelo Democracy Index, mesma nota alcançada por países como Nigéria, República do Congo e Gabão. 

 Alexandre Basílio é palestrante, professor de Direito Eleitoral e Analista Judiciário da Justiça Eleitoral do Rio Grande do Sul.