Introdução: O que está em jogo?
Na próxima quarta-feira, 4 de junho, o Supremo Tribunal Federal julgará o Tema de Repercussão Geral 987, que trata da possibilidade de responsabilização civil dos provedores de aplicação por conteúdo gerado por terceiros. O julgamento é considerado crucial por envolver questões sensíveis relacionadas à liberdade de expressão, à responsabilidade das plataformas digitais e à regulação do espaço público virtual. Sua repercussão poderá ser sentida de forma direta nas eleições futuras, principalmente diante do papel central das redes sociais e serviços de mensagens na dinâmica eleitoral contemporânea.
A decisão a ser proferida poderá estabelecer novos parâmetros sobre os limites da atuação das plataformas digitais e o dever de controle prévio ou reativo de conteúdos, impactando diretamente a forma como o debate político é travado na internet e a segurança jurídica de atores públicos, privados e da própria Justiça Eleitoral.
Marco Civil da Internet e sua integração ao Direito Eleitoral
Desde a sua promulgação em 2014, o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) consolidou princípios fundamentais para o uso da rede no Brasil. Fruto de amplo processo participativo e deliberativo, que incluiu audiências públicas, consultas à sociedade civil, especialistas e empresas de tecnologia, o Marco Civil estabeleceu um modelo de responsabilidade dos intermediários que visa garantir a liberdade de expressão e proteger os usuários contra censura privada indevida.
O artigo 19 da referida lei define que os provedores de aplicação somente podem ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após o recebimento de ordem judicial específica, não tomarem as providências para remover ou tornar indisponível o conteúdo questionado. Trata-se, portanto, de responsabilidade subsidiária e subjetiva, cujo pressuposto central é a omissão quanto ao cumprimento de decisão judicial.
Esse entendimento foi integralmente absorvido pelo Direito Eleitoral. A Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) e diversas resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) passaram a reproduzir, com as devidas adaptações, esse regime de responsabilização indireta. Em tais normas, a responsabilização dos provedores está condicionada ao descumprimento de decisão judicial e ao conhecimento prévio do conteúdo. Portanto, uma eventual revisão desse modelo pelo STF poderá implicar necessidade de reinterpretação sistêmica de todo o regime jurídico-eleitoral, inclusive em aspectos operacionais e processuais.
Responsabilização Secundária e Proteção à Liberdade de Expressão
A responsabilidade condicionada à ordem judicial prevista no Marco Civil representa um freio institucional importante contra abusos e medidas de remoção arbitrária de conteúdos. Ao exigir que haja decisão do Judiciário com identificação clara do conteúdo a ser retirado, o artigo 19 garante a preservação da liberdade de expressão e o necessário contraditório entre as partes envolvidas. Os provedores, por sua vez, não atuam como censores, mas como agentes responsáveis pelo cumprimento de decisões válidas e proporcionais.
Cabe ressaltar, entretanto, que o próprio Marco Civil prevê exceções em que a responsabilização do provedor de aplicação pode se dar de forma direta e imediata, independentemente de ordem judicial. Trata-se de situações específicas em que o legislador optou por um modelo de responsabilização mais célere e objetivo. É o caso do art. 21, que trata da divulgação não autorizada de imagens ou vídeos com cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado. Nessa hipótese, o provedor responde civilmente caso, após notificação feita pela vítima ou seu representante legal, não promova a indisponibilização do conteúdo, desde que a notificação contenha elementos suficientes para identificar o material e a legitimidade do requerente.
Esse dispositivo exemplifica uma hipótese em que o campo interpretativo é bastante reduzido, pois envolve a violação evidente de um direito de personalidade com forte repercussão na esfera íntima do indivíduo. A exigência de atuação diligente do provedor busca evitar a perpetuação da lesão à intimidade e confere maior proteção à vítima em casos de especial gravidade e urgência.
Aplicabilidade no Direito Eleitoral: Previsões Normativas
A aplicação desse regime ao contexto eleitoral é evidenciada no art. 57-F da Lei nº 9.504/1997 e nos arts. 32 da Res. TSE 23.610/2019 e 23.608/2019. Em todos esses dispositivos, a responsabilização dos provedores só é admissível quando: (i) houver decisão judicial específica; (ii) for comprovado o prévio conhecimento do conteúdo irregular; e (iii) não forem adotadas providências tempestivas para cessar a divulgação da propaganda ilícita.
Tais normas visam assegurar o equilíbrio entre a livre circulação de ideias e a integridade do processo eleitoral. Caso o STF modifique tal entendimento, será necessário revisar não apenas os fundamentos normativos dessas regras, mas também os fluxos processuais de fiscalização e remoção de conteúdo durante as campanhas.
Limites das Ordens Judiciais e Garantias ao Debate Político
O art. 38 da Resolução TSE nº 23.610/2019 é paradigmático ao estabelecer que a atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos na internet deve ocorrer com a menor interferência possível no debate democrático. As ordens judiciais de remoção devem ser fundamentadas, observar os limites técnicos das plataformas e conter a indicação precisa do conteúdo a ser retirado (por URL, URI ou URN).
Essa sistemática assegura que o Judiciário atue como instância garantidora de direitos fundamentais, e não como órgão de controle preventivo de discursos. A responsabilização dos provedores, portanto, não decorre da simples presença do conteúdo, mas de sua persistência indevida após ordem judicial válida.
Conteúdos Impulsionados e a Nova Responsabilização Objetiva
Com a edição da Resolução TSE nº 23.732/2024, passou a existir uma hipótese de responsabilização objetiva das plataformas: o impulsionamento remunerado de conteúdos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados. Nesses casos, os provedores são obrigados a adotar medidas imediatas de interrupção da monetização e apuração do fato, mesmo sem a intervenção judicial prévia.
A medida busca responder a um cenário de crescente uso de inteligência artificial e técnicas de desinformação para manipular o debate eleitoral. No entanto, o conceito de “conteúdo notoriamente inverídico ou descontextualizado” é, por sua natureza, indeterminado e sujeito a interpretações divergentes, o que amplia o risco de decisões unilaterais e de restrições indevidas à manifestação do pensamento político.
Casos de Risco Crítico ao Processo Eleitoral: Art. 9º-E
A resolução também prevê a responsabilização solidária dos provedores em situações de risco extremo à integridade do processo eleitoral, ainda que não haja decisão judicial prévia. São cinco as hipóteses expressamente elencadas:
Divulgação de condutas ou atos antidemocráticos (arts. 296, 359-L, 359-M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal);
Compartilhamento de informações falsas que atinjam diretamente a lisura dos processos de votação, apuração e totalização dos votos;
Ameaças diretas ou incitação à violência contra membros da Justiça Eleitoral e do Ministério Público Eleitoral, ou contra a infraestrutura da Justiça Eleitoral;
Promoção de discurso de ódio com base em preconceito de raça, gênero, religião ou ideologias discriminatórias;
Divulgação de conteúdo manipulado por tecnologias digitais, inclusive IA, sem rotulagem adequada.
Embora tais medidas tenham justificativa legítima, sua aplicação sem mediação judicial pode colocar em risco o contraditório e o controle externo das ações das plataformas.
Oficiamento e Exclusão do Polo Passivo em Representações
Conforme consolidado pelo TSE, os provedores de aplicação ou conteúdo não precisam figurar no polo passivo das representações eleitorais, salvo quando forem diretamente responsáveis pela divulgação. É suficiente que sejam oficiados para o cumprimento das ordens judiciais, conforme o disposto no art. 40, § 4º, da Resolução TSE nº 23.610/2019 e no art. 17, § 1º-B da Res. TSE nº 23.608/2019.
Essa diretriz evita judicializações excessivas e reconhece o papel instrumental das plataformas na execução das decisões judiciais.
Desafios da Jurisdição Internacional: Representação Legal no Brasil
O art. 10 da Resolução TSE nº 23.608/2019 determina que plataformas estrangeiras que operem no Brasil devem indicar representante legal no país. Contudo, a efetividade dessa regra depende da comprovação de que a empresa mantém operação direcionada ao público brasileiro, especialmente com coleta de dados e atividade econômica local.
A exigência tem sido questionada quanto à sua aplicação a empresas sediadas fora do território nacional sem presença formal no Brasil, o que pode gerar conflitos de jurisdição e dificuldades práticas de fiscalização e responsabilização.
Direito de Resposta e Limitações Práticas
Nos casos de direito de resposta, os arts. 30, § 3º, da Res. 23.610/2019 e 32, IV, “d”, da Res. 23.608/2019 estabelecem que a obrigação de veiculação recai sobre o usuário responsável pela postagem. O provedor, que não exerce controle editorial prévio, somente poderá ser compelido a divulgar a resposta se houver identificação do responsável. Caso contrário, limita-se à remoção do conteúdo ou à suspensão da conta, sendo indevida a imposição de obrigação de fazer à plataforma.
Conclusão: Entre o Devido Processo e o Risco de Censura Preventiva
Caso o Supremo Tribunal Federal modifique o entendimento atual e passe a admitir a responsabilização direta dos provedores antes da manifestação judicial, haverá necessidade urgente de reforma normativa para ajustar o sistema jurídico-eleitoral. A insegurança jurídica resultante de tal mudança pode desorganizar os procedimentos de fiscalização, comprometer a isonomia entre os candidatos e estimular a autocensura nas plataformas digitais.
O risco é de que se inaugure um modelo de censura privada preventiva, com as plataformas suprimindo conteúdos por receio de sanções, mesmo nos casos em que o conteúdo não configure ilícito evidente.
O caminho mais equilibrado permanece sendo aquele delineado pelo Marco Civil da Internet e replicado na legislação eleitoral: responsabilização secundária condicionada ao descumprimento de ordem judicial e responsabilização objetiva apenas em situações de monetização de conteúdos previamente considerados ilícitos pelo Poder Judiciário.
Diante da complexidade do tema e da sensibilidade do contexto eleitoral, espera-se que o Supremo Tribunal Federal reafirme os pilares do Estado Democrático de Direito, preservando a liberdade de expressão, o contraditório e a segurança jurídica como fundamentos indispensáveis à democracia brasileira.
Sobre o autor
Alexandre Basílio Coura é mestrando em Ciência Política, pós-graduado em Direito Digital e Compliance e atua como professor e pesquisador nas áreas de Inteligência Artificial, Direito Eleitoral e regulação da internet. Participou da elaboração das normas sobre propaganda eleitoral digital e coordena cursos sobre sistemas eleitorais comparados e liberdade de expressão nas plataformas digitais.