No último final de semana, com a ocorrência do evento denominado Lollapalooza, o show principal ficou por conta da Justiça Eleitoral, que determinou obrigação de não fazer aos responsáveis pelo evento, bem como aos artistas que ali se apresentariam.
A repercussão foi imediata e a partir disso houve uma série de acusações de uma Justiça Eleitoral parcial, defendendo o candidato e, por outro lado, de censura prévia sobre a liberdade de manifestação artística dos famosos grupos musicais que se apresentariam.
Para entender a celeuma, é necessário a compreensão de 22 anos de jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral a respeito de propaganda eleitoral antecipada, bem como sobre a capilaridade e alcance de conteúdos eleitorais divulgados pro qualquer meio. Além disso, é ainda mais importante, entender os pedidos da petição inicial apresentada pelo PL, bem como os limites da decisão proferida liminarmente pelo Min. Raul Araújo.
Dessa forma, passo a tecer alguns comentários sobre o caso concreto. Vejamos.
A primeira inverdade que vem sendo divulgada é que a decisão foi tomada com fundamento na atuação de um dos participantes do evento, a Pablo Vittar, que durante um momento do show teria desfilado com uma bandeira/toalha com o rosto de um candidato, feito o sinal de L com uma das mãos e gritado “Fora Bolsonaro”. De fato, a Pablo fez exatamente isso. Mas o que aconteceu no show foi muito além disso, conforme consta na petição inicial proposta pelo PL sobre a manifestação de outros artistas, a exemplo do seguinte trecho da peça vestibular:
De igual sorte, sob responsabilidade das representadas, a cantora internacional Marina incide em propaganda eleitoral antecipada, na modalidade negativa, quando incita os presentes a proferirem palavras de baixo calão contra o pré-candidato filiado à legenda representante, notadamente quando sua fala de inicia com – “eu estou cansada dessa energia, foda-se Bolsonaro”, a depreender que o pré-candidato de alguma forma representa algo de negativo para ela, e, consequentemente, para sua legião de fãs.
Ao final da fala da cantora Marina, o público, estimulado por sua atuação, grita em coro: “Hei, Bolsonaro, vai tomar no cu”.
Além disso, o músico Emicida também incita o público dizendo: “3): Se você tem de 15 a 18 anos, tire a porra do título de eleitor”. “4) Bolsonaro, vai tomar no cu”.
Em que pese ter havido duras manifestações contrárias a um candidato à releição presidencial no país, não se pode dizer que tenha havido propaganda eleitoral antecipada. Não há pedido de voto. Contudo, houve manifestações negativas com pedido de não voto, ao dizer “Fora Bolsonaro”, por exemplo, ou, “Eu estou cansada desse energia, foda-se Putin, foda-se Bolsonaro”, as quais repercutiram fortemente pelas redes sociais, extrapolando os limites do evento.
Nesse caso, poderia a Justiça Eleitoral controlar os limites do evento censurando a fala dos artistas? A resposta imediata é um sonoro não.
Deveria a Justiça Eleitoral aguardar a continuidade das manifestações de cunho político até que elas se transformassem em propaganda eleitoral antecipada explícita positiva ou negativa, gerando um prejuízo à normalidade do pleito, sem possibilidade de se garantir um “statu quo ante”? Aqui também podemos emitir um sonoro, Não.
Isso porque a Justiça Eleitoral tem o dever de disciplinar o período eleitoral e, agindo com poder de polícia, pode emitir avisos sobre comportamentos que estão margeando a legalidade. Nesse caso, vejamos o que pede a inicial do Partido Liberdade:
“4. Do pedido
Ex positis, requer:
a) A concessão da tutela de urgência, oficiando-se de imediato a organização do evento Lollapalooza, para que impeça a realização de qualquer tipo de propaganda eleitoral irregular antecipada ou negativa em favor ou desfavor de qualquer candidato, sob pena de multa por descumprimento, apuração do crime, e sem prejuízo de que a Justiça Eleitoral, em poder de polícia, impeça a continuação do evento;
b) Sejam as representadas notificadas para, querendo, apresentarem defesa;
c) Ao final, seja reconhecida a prática do ilícito, condenadas as representadas à pena do art. 36, §3º, LE, em patamar máximo, dada a gravidade e o poder econômico dos envolvidos.
Brasília, 26 de março de 2022” Não há grifos no original.
Observem que o pedido liminar, previsto no ponto esboçado na alínea a, diz respeito a oficiar a organização do Lollapalooza para que essa respeite os limites da legislação eleitoral. Não há pedidos sobre censura às manifestações políticas lícitas. O pedido é específico e diz respeito à observância da norma posta no art. 36-A, da Lei 9.504/97, que dispõe sobre a expressa vedação de se fazer propaganda eleitoral antecipada positiva ou negativa por meio do pedido explícito de voto ou não voto para um dos pretensos participantes do pleito eleitoral vindouro.
Nesse ponto, é importante ressaltar que não há direitos absolutos em nosso estado democrático de direito. Nem sequer o direito à vida. Os artistas devem o mesmo respeito à legislação eleitoral que as mídias sociais. Não é por acaso que, ao desrespeitar a legislação, o Telegram sofreu uma ordem de suspensão de suas atividades, tudo isso por não bloquear conteúdos de alguém que, de forma contínua e recalcitrante, desrespeitava a legislação eleitoral.
E o que fez o Ministro Raul Araújo ao se deparar com os pedidos da petição inicial? Fez exatamente aquilo que prevê o art. 41, §2º da Lei 9.504/97, senão vejamos:
§ 2º O poder de polícia se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.
Para inibir, ou seja, desestimular ou evitar que ocorra uma prática ilegal, os Juízes Eleitorais se utilizam do poder de polícia. Contudo, não podem dizer: não fale isso, ou não apresente esse show, ou não usem o nome de um determinado candidato. Mas, podem dizer: não cometa ilícitos eleitorais do tipo propaganda eleitoral antecipada positiva ou negativa, pois, se o fizer, dada a conjuntura do evento, será responsabilizado. Vejamos como o Ministro Raul Araújo redigiu sua decisão:
“Nestes termos, considerando a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, defiro parcialmente o pedido de tutela antecipada formulada na exordial da representação, no sentido de prestigiar a proibição legal, vedando a realização ou manifestação de propaganda eleitoral ostensiva e extemporânea em favor de qualquer candidato ou partido político por parte dos músicos e grupos músicas que se apresentem no festival, sob pena de multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) por ato de descumprimento, a ser suportada pelos representados, até ulterior deliberação desta Corte.
Publique-se. Intime-se com urgência.
Brasília, 26 de março de 2022.” Sem grifos no original.
Ao ler a Representação apresentada pelo Partido ao TSE e, em seguida, analisando a decisão detidamente, percebe-se que o Ministro, em análise superficial, cumpriu o mandamento legal. Decidiu, com os cuidados que a lei lhe impõe, inibir a possibilidade de ocorrência de atos ilegais, para, posteriormente, na decisão de mérito, analisar os fatos apresentados na inicial de forma mais detida e aprofundada.
Impossível, em uma análise jurídica, entender como censura aos artistas o fato de se exigir o cumprimento do que prescreve a lei.
Claro, para os incautos que se posicionaram baseado no "ouvi dizer", sem ler a inicial e sem analisar a decisão proferida pelo TSE, inclusive considerando seu alcance, há que se acreditar ter havido censura. Inclusive, a maior parte dos que se posicionaram desconsideram que o próprio TSE tem pacífica jurisprudência no sentido de que configura propaganda eleitoral antecipada irregular, não apenas o pedido explícito de voto, mas, também, o conteúdo eleitoral que alcance grande capilaridade, por meio proscrito em período eleitoral, calçado em grandes investimentos financeiros.
Nesse sentido, temos várias decisões desde 2018, para citar como exemplo, o Agr-AI 924, O Resp 4346, bem como os Resp 0600227-31 e o 0600337-30. Todos eles são pacíficos em prescrever que, para além do mero conteúdo, de forma não cumulativa, configura propaganda eleitoral antecipada ilícita, (i) a presença de pedido explícito de voto; (ii) a utilização de formas proscritas durante o período oficial de propaganda; ou (iii) a violação ao princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos.
Dessa maneira, entendo, por fim, que a decisão do TSE está alicerçada nos fundamentos criados pela própria Corte eleitoral, bem como pela legislação eleitoral, longe de poder ser considerada censura prévia às manifestações artísticas.
Se há um remédio para o problema, é a defesa do Novo Código Eleitoral, o qual resolve de forma contundente esse e outros problemas, ao apresentar conceitos claros do que vem a ser propaganda eleitoral positiva, negativa, antecipada lícita e antecipada ilícita, critérios mínimos de aplicação da legislação, que hoje nos faltam.
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