Alexandre Basilio
Mestrando em Ciência Política, professor de Direito Digital e Direito Eleitoral. Pesquisador em Democracia e Tecnologia.
1. Introdução
O Poder de
Polícia é uma das prerrogativas mais relevantes da Administração Pública,
permitindo-lhe impor limites e condições ao exercício de direitos individuais
em prol do interesse público. No âmbito eleitoral, sua função está diretamente
relacionada à preservação da lisura do processo eleitoral e ao equilíbrio entre
a liberdade de expressão e a coibição de ilícitos. Contudo, a sua compreensão
exige uma análise histórica que remonta ao período autoritário, perpassa a
redemocratização e chega ao cenário contemporâneo, em que as novas tecnologias
e a comunicação digital impõem desafios inéditos.
A presente
análise parte do conceito amplo e centralizador presente no Código Tributário
Nacional, passa pela disciplina do Código Eleitoral, examina as restrições
impostas pela Lei nº 9.504/1997 e culmina na regulamentação da Resolução nº
23.610/2019 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com menção à Resolução nº
23.714/2022. O objetivo é fornecer uma visão técnica, didática e sistemática,
destinada a juristas, magistrados, membros do Ministério Público, advogados e
acadêmicos, sobre a evolução e aplicação do Poder de Polícia no contexto
eleitoral.
2. Origem e conceito no Código
Tributário Nacional (1966)
O art. 78 do
Código Tributário Nacional, com redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de
1966, estabelece que “considera-se poder de polícia a atividade da
administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina
da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de
concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao
respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”.
O parágrafo
único dispõe que se considera regular o exercício do poder de polícia quando
desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com
observância do devido processo legal e, tratando-se de atividade
discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
LEI Nº 5.172, DE 25 DE
OUTUBRO DE 1966. Código Tributário Nacional.
Art. 78. Considera-se poder de polícia
atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito,
interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão
de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes,
à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas
dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade
pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
(Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 1966)
Parágrafo único. Considera-se regular o
exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos
limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de
atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.
Esse
conceito, elaborado durante o regime militar, confere à Administração Pública
um poder de intervenção amplo, legitimando a limitação de direitos individuais
por uma variedade extensa de motivos, todos vinculados a interesses públicos
genéricos. A norma reflete a concepção centralizadora do Estado naquele
período, permitindo-lhe intervir diretamente em atividades e condutas privadas,
desde que formalmente amparado pela lei e pela competência administrativa.
3. O Código Eleitoral e o art.
249 (1965)
O art. 249 do
Código Eleitoral, promulgado em 1965, dispõe que “o direito de propaganda não
importa restrição ao poder de polícia quando este deva ser exercido em
benefício da ordem pública”.
LEI Nº 4.737, DE 15 DE
JULHO DE 1965.
Art. 249. O direito de
propaganda não importa restrição ao poder de polícia quando este deva ser
exercido em benefício da ordem pública.
A regra
revela que, mesmo assegurado o direito de propaganda, a Administração Eleitoral
mantinha ampla prerrogativa para intervir, sob o argumento da preservação da
ordem pública. O conceito de “ordem pública”, de contornos amplos e imprecisos,
possibilitava a suspensão ou limitação de manifestações eleitorais sempre que
consideradas potencialmente perturbadoras, mantendo o espírito de forte
intervenção estatal característico do período pré-1988.
4. A Lei nº 9.504/1997 e a
redução dos limites do Poder de Polícia
A promulgação
da Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova perspectiva para os direitos
e garantias individuais, repercutindo diretamente no âmbito eleitoral. A Lei nº
9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições, promoveu uma drástica redução no
alcance do Poder de Polícia.
O art. 41 da
Lei estabelece que a propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não
poderá ser objeto de multa nem cerceada sob alegação do exercício do Poder de
Polícia ou de violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na
forma prevista no art. 40. Observa-se aqui um erro material, pois a remissão
lógica deveria ser ao art. 40-B, que trata especificamente das representações eleitorais para remoção de propagandas e aplicação de multas eleitorais.
Art. 41. A
propaganda exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de
multa nem cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de
violação de postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista
no art. 40.
Art. 40. O uso, na
propaganda eleitoral, de símbolos, frases ou imagens, associadas ou semelhantes
às empregadas por órgão de governo, empresa pública ou sociedade de economia
mista constitui crime, punível com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa
de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de
dez mil a vinte mil UFIR.
Art. 40-B. A representação relativa à propaganda
irregular deve ser instruída com prova da autoria ou do prévio conhecimento do
beneficiário, caso este não seja por ela responsável
O § 1º do
referido dispositivo atribui o exercício do Poder de Polícia sobre propaganda
eleitoral aos juízes eleitorais e aos juízes designados pelos Tribunais
Regionais Eleitorais. Já o § 2º limita tal poder às providências necessárias
para inibir práticas ilegais, vedando expressamente a censura prévia sobre o
teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na internet.
§ 1º. O poder de polícia sobre a propaganda
eleitoral será exercido pelos juízes eleitorais e pelos juízes designados pelos
Tribunais Regionais Eleitorais.
§ 2º. O poder de polícia se restringe às
providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a censura prévia
sobre o teor dos programas a serem exibidos na televisão, no rádio ou na
internet.
5. Resolução TSE nº
23.610/2019 e a consolidação normativa
A Resolução
nº 23.610/2019 do TSE regulamenta a propaganda eleitoral e reafirma as balizas
da Lei nº 9.504/1997.
5.1 Poder
de Polícia de rua (art. 6º e 8º)
O art. 6º e
seus parágrafos repetem a regra de que a propaganda nos termos da lei não pode
ser restringida pelo Poder de Polícia, salvo nas hipóteses de flagrante
ilegalidade. Esclarece, ainda, que o poder de polícia é próprio dos juízes
eleitorais, zonais ou designados pelos tribunais regionais eleitorais, sem qualquer
menção ao poder de polícia dos ministros do TSE.
Conforme
preleciona o parágrafo 3º, vale lembrar que não se pode aplicar multas em poder
de polícia, o que foi confirmado pela Súmula 18 do TSE. A única medida
possível, em tese, é o crime de desobediência, sendo as multas aplicáveis
apenas após a representação eleitoral proposta pelo MP.
Art. 6º A propaganda
exercida nos termos da legislação eleitoral não poderá ser objeto de multa nem
cerceada sob alegação do exercício do poder de polícia ou de violação de
postura municipal, casos em que se deve proceder na forma prevista no art. 40
da Lei nº 9.504/1997 (Lei nº 9.504/1997, art. 41, caput) .
§ 1º O poder de polícia
sobre a propaganda eleitoral será exercido juízas ou juízes designadas(os)
pelos tribunais regionais eleitorais, nos termos do art. 41, § 1º, da Lei nº
9.504/1997 , observado ainda, quanto à internet, o disposto no art. 8º desta Resolução.
§ 2º O poder de polícia
se restringe às providências necessárias para inibir práticas ilegais, vedada a
censura prévia sobre o teor dos programas e das matérias jornalísticas a serem
exibidos na televisão, na rádio, na internet e na imprensa escrita (Lei nº
9.504/1997, art. 41, § 2º).
§ 3º No caso de
condutas sujeitas a penalidades, a autoridade eleitoral delas cientificará o
Ministério Público, para os fins previstos nesta Resolução.
Súmula 18 do TSE: Conquanto investido de poder de
polícia, não tem legitimidade o juiz eleitoral para, de ofício, instaurar
procedimento com a finalidade de impor multa pela veiculação de propaganda
eleitoral em desacordo com a Lei nº 9.504/1997.
O art. 8º
define a competência para o exercício de poder de polícia na internet, determinando
que a sua execução deve ser operacionalizada no local em que o registro de candidatura
das pessoas envolvidas será julgado, contrariando, em razão da ubiquidade das
propagandas na internet, a ideia de um poder limitado territorialmente quanto
apenas ao local dos fatos, conforme ocorre no exercício do poder de polícia
sobre as propagandas de rua.
Art. 8º Para assegurar
a unidade e a isonomia no exercício do poder de polícia na internet, este
deverá ser exercido:
I - nas eleições
gerais, por uma(um) ou mais juízas ou juízes designadas(os) pelo tribunal
eleitoral competente para o exame do registro da candidata ou do candidato
alcançado pela propaganda;
II - nas eleições
municipais, pela juíza ou pelo juiz que exerce a jurisdição eleitoral no
município e, naqueles com mais de uma zona eleitoral, pelas juízas eleitorais e
pelos juízes eleitorais designadas(os) pelos respectivos tribunais regionais
eleitorais.
5.2 Poder
de Polícia na internet quanto aos meios e formas de divulgação (art. 7º)
A Resolução é
expressa: na internet, o Poder de Polícia só pode recair sobre a forma e o meio
de veiculação (ex.: ausência de identificação obrigatória, impulsionamento
irregular, violação de regras técnicas). O teor (conteúdo) da propaganda não
pode ser objeto de intervenção administrativa direta, devendo eventual
irregularidade ser encaminhada ao Ministério Público Eleitoral para
representação judicial.
Quando a
norma faz essa menção, também deixa claro que está tratando de ilícitos
eleitorais ligados à propaganda eleitoral específica, ou seja, aquela que
disponha sobre candidaturas, candidatos, partidos e sobre o contexto geral da
disputa, sem limitar, portanto, a atuação da Justiça Eleitoral contra conteúdos
que digam respeito à confiabilidade da Justiça Eleitoral e dos resultados do
pleito, conforme , § 3º do dispositivo aqui mencionado e artigo 9-F desta mesma
resolução.
Art. 7º O juízo
eleitoral com atribuições fixadas na forma do art. 8º desta Resolução somente
poderá determinar a imediata retirada de conteúdo na internet que, em sua
forma ou meio de veiculação, esteja em desacordo com o disposto nesta
Resolução.
§ 1º Caso a
irregularidade constatada na internet se refira ao teor da propaganda, não
será admitido o exercício do poder de polícia, nos termos do art. 19 da Lei nº
12.965/2014 ;
§ 2º Na hipótese
prevista no § 1º deste artigo, eventual notícia de irregularidade deverá ser
encaminhada ao Ministério Público Eleitoral.
§ 3º O disposto
neste artigo se refere ao poder de polícia sobre propaganda eleitoral
específica, relacionada às candidaturas e ao contexto da disputa, mantida a
competência judicial para a adoção de medidas necessárias para assegurar a
eficácia das decisões do Tribunal Superior Eleitoral, na forma do art. 9º-F
desta Resolução. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
Art. 9º-F. No caso de a
propaganda eleitoral na internet veicular fatos notoriamente inverídicos ou
gravemente descontextualizados sobre o sistema eletrônico de votação, o
processo eleitoral ou a Justiça Eleitoral, as juízas e os juízes
mencionados no art. 8º desta Resolução ficarão vinculados, no exercício
do poder de polícia e nas representações, às decisões colegiadas do Tribunal
Superior Eleitoral sobre a mesma matéria, nas quais tenha sido
determinada a remoção ou a manutenção de conteúdos idênticos. (Incluído
pela Resolução nº 23.732/2024)
6. Conteúdo desvinculado de
candidatos e partidos: desinformação sobre o processo eleitoral
Quando o
conteúdo não envolve propaganda eleitoral, mas veicula desinformação sobre o
processo eleitoral, urnas eletrônicas ou sobre a Justiça Eleitoral, o
procedimento admite a remoção administrativa do conteúdo considerado ilícito.
A revogação
do art. 9-A da Resolução nº 23.610/2019 pela Resolução nº 23.714/2022 retirou a
exigência de representação do Ministério Público para a adoção dessa medida,
conferindo maior celeridade e confirmando a natureza administrativa ao processo
de retirada de ofício de conteúdo eleitoral lato sensu considerado ilícito pela Justiça
Eleitoral.
Art. 9º-A. É vedada a
divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente
descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive
os processos de votação, apuração e totalização de votos, devendo o juízo eleitoral,
a requerimento do Ministério Público, determinar a cessação do ilícito,
sem prejuízo da apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso
indevido dos meios de comunicação. (Revogado pela Resolução nº
23.714/2022)
7. Resolução nº 23.714/2022:
novos desafios e medidas sancionatórias
A Resolução
nº 23.714/2022, validada pela ADI 7261, de relatoria do Ministro Edson Fachin,
introduziu mecanismos mais diretos de combate à desinformação, mas sua redação
apresenta termos vagos, como “conteúdo sabidamente inverídico” e “gravidade”,
que dependem de valoração subjetiva.
EMENTA. DIREITO
CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. CONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO TSE Nº.
23.714/2022. ENFRENTAMENTO DA DESINFORMAÇÃO CAPAZ DE ATINGIR A INTEGRIDADE DO
PROCESSO ELEITORAL. 1. Não se reveste de fumus boni iuris a alegação de que o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao exercer a sua atribuição de elaboração
normativa e o poder de polícia em relação à propaganda eleitoral, usurpa a
competência legislativa da União, porquanto a Justiça Especializada vem
tratando da temática do combate à desinformação por meio de reiterados
precedentes jurisprudenciais e atos normativos, editados ao longo dos últimos
anos. 2. A Resolução TSE nº. 23.714/2022 não consiste em exercício de censura
prévia. 3. A disseminação de notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral,
pode ter a força de ocupar todo espaço público, restringindo a circulação de
ideias e o livre exercício do direito à informação. 4. O fenômeno da
desinformação veiculada por meio da internet, caso não fiscalizado pela
autoridade eleitoral, tem o condão de restringir a formação livre e consciente
da vontade do eleitor. 5. Ausentes elementos que, nesta fase processual,
conduzam à decretação de inconstitucionalidade da norma impugnada, há que se
adotar atitude de deferência em relação à competência do Tribunal Superior
Eleitoral de organização e condução das eleições gerais. 6. Medida cautelar
indeferida.
(ADI 7261 MC-Ref, Relator(a): EDSON
FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2022, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-237
DIVULG 22-11-2022 PUBLIC 23-11-2022)
A principal
crítica à norma é que ela amplia o uso do poder de polícia para hipóteses antes
condicionadas à atuação do Ministério Público, permitindo a remoção de conteúdo
de ofício em situações descritas de forma abstrata, como no § 2º, que veda, nos
termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos
sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a
integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração
e totalização de votos.
A utilização
da expressão “inclusive” indica que a norma não se limita às hipóteses em que
os resultados do pleito são colocados em xeque, permitindo interpretação
extensiva para abarcar qualquer situação que se entenda como gravemente
descontextualizada e capaz de afetar a integridade do processo eleitoral.
Assim, embora possa parecer que o foco seja apenas a desinformação que
coloque em dúvida o resultado do pleito, o termo deixa claro que a abrangência
é mais ampla.
Art. 1º Esta Resolução dispõe
sobre o enfrentamento à desinformação atentatória à integridade do processo
eleitoral.
Art. 2º É vedada, nos
termos do Código Eleitoral, a divulgação ou compartilhamento de fatos
sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a
integridade do processo eleitoral, INCLUSIVE os processos de
votação, apuração e totalização de votos.
7.1 - Medidas
sancionatórias além da remoção de conteúdo.
Para além da
retirada de conteúdo, a Resolução nº 23.714/2022 prevê um conjunto de medidas
graduadas, dirigidas a provedoras(es) e usuárias(os), a depender da gravidade,
do alcance e da reiteração do ilícito, tais como: (i) rotulagem, redução de
alcance e desmonetização de conteúdos; (ii) desindexação e desativação de
impulsionamento; (iii) suspensão temporária de perfis, páginas, canais e
grupos; (iv) suspensão temporária de funcionalidades e de serviços da
plataforma no Brasil em hipóteses de reiterado descumprimento; e (v) aplicação
de multas diárias (astreintes) e comunicação ao Ministério Público para
apuração de responsabilidades cíveis e penais.
A arquitetura sancionatória evidencia que a
norma ultrapassa a lógica meramente assecuratória da retirada de conteúdo,
aproximando-se de um regime de polícia administrativa de alta intensidade,
situações que podem ser realizadas de ofício, conforme convicção formada sobre
o caso pelo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
A norma foi
aplicada no pleito para o qual foi editada, mas estabelece precedentes
relevantes para futuras regulamentações permanentes.
7.2
Delimitação penal e temporal do impulsionamento: a janela de 48h/24h
A Resolução
nº 23.714/2022 enfrenta um dos seus principais desafios ao compatibilizar a
vedação administrativa de veiculação paga com a tipicidade penal prevista na
Lei nº 9.504/1997. O art. 6º da Resolução dispõe ser vedada “desde quarenta e
oito horas antes até vinte e quatro horas depois da eleição” a veiculação paga,
inclusive por monetização direta ou indireta, de propaganda eleitoral na
internet (caput), prevendo (i) remoção imediata sob pena de multa horária de R$
100.000,00 a R$ 150.000,00 (§ 1º) e (ii) a qualificação do descumprimento como gasto
ilícito de recursos eleitorais, apto a ensejar desaprovação de contas, sem
prejuízo da apuração do crime do art. 39, § 5º, IV, da Lei nº 9.504/1997 (§
2º).
Ocorre que a
moldura temporal administrativa (48h antes a 24h após) não se sobrepõe nem expande
o alcance do tipo penal. À luz da legalidade estrita (nullum crimen, nulla
poena sine lege), a incidência criminal do art. 39, § 5º, IV, alcança a conduta
quando o impulsionamento ocorre no dia do pleito, enquanto o intervalo entre T–48h
e T–24h permanece, por força da Resolução, na esfera administrativa-contábil
(gasto ilícito e efeitos nas contas), sem que disso decorra, por si, tipicidade
penal.
A cláusula “sem
prejuízo” do § 2º, portanto, remete à verificação autônoma dos elementos do
tipo penal — não autoriza ampliar, por ato normativo infralegal, a
temporalidade do crime.
Do ponto de
vista prático, emergem três frentes de controvérsia:
(a)
Definição de “veiculação paga” e “monetização direta ou indireta”. A
expressão abrange impulsionamento formal de anúncios (ads/boosts), posts
patrocinados, conteúdos promovidos por terceiros com reembolso, redes de
afiliados e formatos híbridos (por exemplo, “parcerias” que resultem em
pagamento por alcance). A caracterização da onerosidade e o nexo com o beneficiário
eleitoral são centrais para diferenciar propaganda paga de manifestações
espontâneas.
(b)
Temporalidade e execução automatizada. Situações recorrentes incluem: (i)
campanhas programadas antes do marco temporal que seguem sendo entregues
durante a vedação; (ii) carry-over algorítmico (impressões residuais após o
suposto desligamento); (iii) diferenças de fuso horário e carimbo de data/hora
do provedor; (iv) budget pacing que consome saldo dentro da janela proibida.
Nesses casos, a aferição de materialidade depende de relatórios de veiculação
(logs, faturamento, comprovantes de entrega por data/hora, URIs/URLs),
devendo-se distinguir programação de efetiva veiculação.
(c)
Autoria e imputação. É preciso individualizar quem acionou/financiou a
veiculação: candidata(o)/partido/federação, terceiros(as) ou apoiadores(as)
autônomos(as). A imputação penal exige dolo e vínculo material com o núcleo do
tipo; a imputação contábil/administrativa pode operar com standards probatórios
distintos, mas também demanda lastro documental suficiente para demonstrar gasto
ilícito.
Dessa tensão
decorre uma dupla trilha sancionatória:
- Esfera administrativa-contábil (T–48h a T+24h):
remoção imediata (art. 6º, § 1º), multas por descumprimento de ordem e
reconhecimento de gasto ilícito com potencial desaprovação das contas (§
2º).
- Esfera penal (janela típica do art. 39, § 5º, IV):
quando comprovada a veiculação paga no período criminoso (dia da eleição),
pode haver apuração do crime, cumulável com as consequências
administrativas já referidas.
Para mitigar
riscos de imputação, recomenda-se a adoção de controles preventivos: (i) trava
automática para impulsionamento a partir de T–49h (margem de segurança); (ii)
segmentação de data e horário por fuso local; (iii) auditoria prévia de
campanhas ativas; (iv) registro e guarda dos relatórios de veiculação e
faturamento; (v) procedimentos de contingência com as plataformas para
cancelamento imediato e comprovação do “time stamp” de desligamento. Tais
medidas são decisivas tanto para evitar a materialidade do ilícito quanto para demonstrar
diligência em eventual apuração penal.
Em síntese, a
Resolução nº 23.714/2022 delimita administrativamente a vedação a um período
mais amplo (48h–24h antes e 24h após), mas defendemos que não altera a
exigência de tipicidade penal estrita para o crime do art. 39, § 5º, IV. O
desafio hermenêutico consiste em evitar analogia in malam partem,
assegurando que só haja persecução criminal quando presentes todos os elementos
legais, sem prejuízo das repercussões contábeis e das ordens de remoção e multa
previstas no âmbito administrativo.
Art. 6º É vedada, desde
quarenta e oito horas antes até vinte e quatro horas depois da eleição,
a veiculação paga, inclusive por monetização, direta ou indireta, de propaganda
eleitoral na Internet, em sítio eleitoral, em blog, em sítio interativo ou
social, ou em outros meios eletrônicos de comunicação da candidata ou do
candidato, ou no sítio do partido, federação ou coligação (art. 7º da Lei n.
12.034, de 29 de setembro de 2009).
§ 1º Verificado
descumprimento da vedação a que se refere o caput, o Tribunal Superior
Eleitoral, em decisão fundamentada, determinará às plataformas a imediata
remoção da URL, URI ou URN, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais)
a R$ 150.000,00 (cem e cinquenta mil reais) por hora de descumprimento, a
contar do término da primeira hora após o recebimento da notificação.
§ 2º O descumprimento
do disposto no caput configura realização de gasto ilícito de recursos
eleitorais, apto a determinar a desaprovação das contas pertinentes, sem
prejuízo da apuração do crime previsto no art. 39, § 5º, inciso IV, da Lei n.
9.504, de 30 de setembro de 1997
Lei 9.504/97
Art. 39. A realização
de qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou
fechado, não depende de licença da polícia.
§ 5º Constituem crimes,
no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano,
com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e
multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:
IV - a publicação de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos nas aplicações de internet de que trata o art. 57-B desta Lei, podendo ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente.
8.
Considerações finais
A evolução
normativa do Poder de Polícia eleitoral revela três fases distintas: entre 1965
e 1988, prevaleceu um modelo de forte intervenção estatal, no qual a Justiça
Eleitoral dispunha de ampla margem para restringir a propaganda sob argumentos
como a preservação da ordem pública; a partir da Lei nº 9.504/1997 e
consolidado pela Resolução nº 23.610/2019, verificou-se uma limitação
significativa, restringindo o uso do poder de polícia a ilícitos objetivos e
flagrantes, afastando a censura prévia e preservando a liberdade de expressão;
por fim, com a Resolução nº 23.714/2022, houve nova expansão, voltada ao
combate à desinformação eleitoral, inclusive por meio de medidas mais gravosas
que a simples remoção de conteúdo.
É importante
destacar que o Poder de Polícia Eleitoral só pode ser utilizado contra as propagandas
eleitorais ou conteúdos que coloquem em xeque os resultados do pleito, e apenas
durante o período eleitoral, preservando-se a pluralidade de ideias no debate
democrático. O desafio contemporâneo está em manter esse equilíbrio em um
cenário de rápida disseminação de (des)informações digitais e de sofisticadas
estratégias de desinformação, exigindo da Justiça Eleitoral respostas céleres,
proporcionais e juridicamente fundamentadas.