domingo, 3 de agosto de 2025

Desinformação Eleitoral e Democracia Digital: entre a Liberdade de Expressão, o Risco Sistêmico e o Desafio da Remoção Estrutural

 


Alexandre Basilio
Mestrando em Ciência Política, professor de Direito Digital e pesquisador em Democracia e Tecnologia.


1. Introdução

A era digital desafiou os pilares tradicionais da democracia liberal, convertendo as redes sociais em arenas instáveis de disputa simbólica, onde a desinformação eleitoral não apenas circula com velocidade incontrolável, mas também reconfigura os próprios padrões de coesão social e de construção da verdade pública.

Diante da ascensão de campanhas de desinformação orquestradas, com objetivos políticos e antidemocráticos, o debate jurídico não pode mais se restringir a fórmulas clássicas de liberdade de expressão. É preciso reconhecer que a arquitetura digital e a dinâmica emocional das redes sociais impõem uma nova gramática à regulação democrática, exigindo soluções integradas entre Direito, tecnologia e sociologia.

2. Redes sociais como rituais emocionais e identitários

A explicação sobre o fenômeno da desinformação, por muitos anos, esteve atrelada às metáforas de “bolhas digitais” ou “câmaras de eco”. No entanto, essas imagens são insuficientes para explicar a profundidade da adesão política tribalizada em ambientes digitais.

A partir da teoria das cadeias de rituais interacionais, desenvolvida por Randall Collins com base em Durkheim, compreende-se que as redes sociais não apenas difundem ideias, mas consolidam identidades coletivas através de rituais simbólicos digitais: curtidas, hashtags, compartilhamentos e indignações coletivas funcionam como formas de reforço de pertencimento grupal. O “outro político” deixa de ser adversário e passa a ser um herege a ser moralmente expurgado.

Autoras como Zeynep Tufekci e William Davies complementam essa perspectiva ao afirmar que a política digital contemporânea é movida não pela razão pública, mas por emoções tribais compartilhadas, como medo, raiva e orgulho. Assim, o discurso digital passa a ser uma performance moral, em que o objetivo é mais “lacrar” do que dialogar. Razão e verdade tornam-se questões diminutas, quando o que se defende são os interesses do grupo.

3. O paradoxo da tolerância e os limites jurídicos da expressão digital

Nesse ambiente altamente emocional e simbólico, a liberdade de expressão não opera como um instrumento de deliberação racional, mas como arma estratégica para ocupação e destruição do espaço público democrático.

Karl Popper, em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, alertou para o chamado paradoxo da tolerância: “Se tolerarmos ilimitadamente os intolerantes, a tolerância será destruída e, com ela, a própria sociedade aberta.” Essa advertência filosófica tem aplicação jurídica direta: o Estado democrático tem o dever de proteger a liberdade, inclusive impondo limites à sua manipulação abusiva, sobretudo quando essa manipulação visa deslegitimar o processo eleitoral, propagar mentiras sistemáticas ou fomentar o descrédito institucional, o desafio é fazer isso por meio de soluções baseadas na arquitetura, em vez de mera força.

 

4. A crítica à verdade estatal e a centralidade da jurisdição no caso concreto

Embora o enfrentamento à desinformação seja legítimo e necessário, não se pode recorrer à instituição de uma “verdade oficial” definida previamente pelo Estado ou por órgãos administrativos como forma de controle informacional. Essa estratégia, além de arriscada sob a ótica democrática, pode reproduzir a lógica do Codex da Inquisição, em que ideias eram censuradas por desafiarem a ortodoxia dominante, sem espaço para controvérsia legítima ou dialética argumentativa.

A defesa da liberdade de expressão, especialmente em contextos nos quais há pluralidade de interpretações e múltiplos pontos de vista admissíveis, demanda a atuação do Poder Judiciário como espaço de deliberação institucionalizada e garantidora de direitos fundamentais. É apenas na análise do caso concreto, com contraditório e fundamentação adequada, que se pode afirmar se determinado conteúdo ultrapassa os limites constitucionais da liberdade e se converte em ilícito.

Esse modelo jurisdicional evita tanto o arbítrio do censor quanto a negligência frente a conteúdos abusivos. Ele preserva o núcleo democrático da liberdade de expressão, mas assegura sua compatibilidade com a integridade do processo eleitoral, elemento essencial da soberania popular.

5. O problema da remoção pontual: enxugar gelo digital

Mesmo quando há decisão judicial que reconhece o conteúdo como abusivo, o atual modelo de cumprimento é fragmentado e ineficaz. A ordem judicial é dirigida a uma plataforma específica, que remove o conteúdo naquele ambiente, mas variações idênticas ou ligeiramente modificadas continuam a circular em outras redes, grupos fechados ou perfis espelhados.

Esse ciclo de “remoção e replicação” — verdadeiro enxugamento de gelo digital — fragiliza a autoridade judicial e impede a concretização da tutela jurisdicional.

A resposta para esse dilema não está na censura ampla ou na criação de uma “verdade estatal”, mas sim na criação de mecanismos estruturais de remoção coordenada, baseados em parâmetros objetivos definidos pelo próprio Judiciário.

 

6. “Code is Law”: arquitetura digital como instrumento de cumprimento de decisões

O jurista Lawrence Lessig, em sua obra Code and Other Laws of Cyberspace, afirmou que o comportamento digital é regulado por quatro forças: o Direito, o mercado, as normas sociais e o código — sendo este último a arquitetura técnica das plataformas, ou seja, o que é possível fazer em seu ambiente.

Essa arquitetura pode ser moldada para cumprir decisões judiciais com maior eficácia, por meio de soluções como:

  • Hashing e fingerprinting de conteúdos audiovisuais para rastrear réplicas;
  • Detecção automática por IA de conteúdos parcialmente modificados, baseando-se em vetores semânticos e reconhecimento multimodal (texto, imagem, áudio);
  • Interoperabilidade obrigatória entre plataformas para garantir que a ordem judicial vincule toda a rede, e não apenas o réu do processo.

A efetividade no combate à desinformação só pode ser garantida a partir de medidas dessa jaez, batalha única que deveria ser travada contra as big techs para implementação de tais soluções.

 

7. O art. 9-G da Resolução TSE nº 23.610/2019: proposta inovadora e ainda pendente de implementação efetiva

Nesse sentido, merece destaque a inclusão do art. 9-G na Resolução TSE nº 23.610/2019, pela Resolução TSE nº 23.732/2024, de minha autoria, a partir do qual eu propus a criação de um repositório oficial de decisões judiciais de remoção de conteúdos ilícitos e desinformativos.

O dispositivo prevê que, uma vez reconhecida a ilicitude do conteúdo, a decisão judicial seja inserida nesse repositório, notificando automaticamente todas as plataformas relevantes para impedir sua veiculação em qualquer formato reconhecível.

Esse modelo busca resolver dois problemas centrais:

  1. Evitar a replicação do conteúdo ilícito em novos canais ou perfis;
  2. Transformar a decisão judicial em comando técnico estruturado, replicável e auditável, sem depender da interpretação subjetiva das plataformas.

Contudo, é necessário reconhecer que o art. 9-G ainda carece de efetiva implementação técnica. Até o momento, não há um repositório funcional com interoperabilidade entre plataformas e estrutura de IA aplicada à detecção automática do conteúdo judicialmente proibido. A eficácia da norma, portanto, depende da vontade institucional de desenvolver, com base na lei, os meios tecnológicos necessários para torná-la exequível.

Além disso, o repositório não foi pensado para armazenar apenas o PDF das decisões, conforme vem sendo feito. Ao contrário, deve abrigar as imagens, áudios e vídeos originais utilizados no ilícito, de forma que as empresas envolvidas em disponibilizar o conteúdo online, ao serem intimadas da decisão que considere tais elementos como proibidos, possam configurar seus servidores para banir e impedir replicações diretas ou indiretas de tais conteúdos.

Abaixo uma visão simplificada do Processo:

  

Início

1) Provocação da discussão por meio de Representação Eleitoral contra a desinformação pelos interessados legitimados.

2)      Atuação direta do MP ou de Ofício da  Justiça Eleitoral para proteção de regularidade do pleito ( desinformação contra Urnas e Resultados dos Pleitos).

3)  Julgamento monocrático do caso (não habilita ao uso do Art. 9-G, por ser medida excepcional).

  

Julgamento Colegiado.

 1)      TRE ou TSE julgam de forma colegiada a representação considerando a inclusão da desinformação no Repositório Eleitoral. 

2)      Colegiado considera necessária a proibição do conteúdo durante período eleitoral 

3) Contra decisões proferidas pelos TREs cabem recursos ao TSE para remoção dos dados do repositório.   

 

Medida Administrativa:

1)      Inserção dos dados como áudio, vídeo ou imagens acompanhados da decisão que determina sua ilicitude. 

2)      A mera inserção no sistema dispara a notificação a todos os provedores de conteúdo, parceiros cadastrados do TSE (cadastro obrigatório). 

3)      Provedores de aplicações e de conteúdo, de posse das informações necessárias viabilizam meios tecnológicos para que esses conteúdos sejam plenamente removidos e não voltem mais a circular na rede, inclusive WhatsApp (tecnicamente possível para conteúdos já em circulação). 

4)      Conteúdo definitivamente proibido, divulgado amplamente aos provedores cadastrados, de forma que não volte a circular no período eleitoral, sob pena de responsabilização objetiva.

 


8. Conclusão: desafios para o legislador e para a democracia digital

A desinformação eleitoral não é apenas um desvio ético, mas um risco sistêmico para a democracia. Seu combate exige um novo modelo regulatório, que una eficácia jurisdicional, racionalidade tecnológica e garantias constitucionais.

O legislador brasileiro terá papel decisivo nas próximas reformas:

  • Regulamentar o uso de inteligência artificial para cumprimento de decisões judiciais de remoção;
  • Estabelecer normas de responsabilidade compartilhada entre plataformas, agentes públicos e provedores de infraestrutura digital;
  • Expandir o modelo do art. 9-G, transformando-o em um instrumento central de proteção do processo democrático.

Vivemos uma realidade em que, pela primeira vez, a punição pelo mal causado, no caso, a desinformação, não traz qualquer solução para a preservação democrática. Precisamos agir preventivamente e na mesma velocidade da circulação da desinformação. Agir posteriormente, por mais grave que seja a punição aos envolvidos, de qualquer forma, significa que perdemos a batalha.

 

Em suma, não se trata de suprimir a divergência nem de instituir dogmas oficiais, mas de criar as condições jurídicas e técnicas para que o debate público se dê em ambiente íntegro, com base em informação verificável e sob proteção jurisdicional contra abusos e manipulações.

O desafio do presente é encontrar esse ponto de equilíbrio — onde liberdade e responsabilidade digital caminhem lado a lado, sem concessões nem retrocessos.

 

Referências Bibliográficas 

COLLINS, Randall. Interaction Ritual Chains. Princeton: Princeton University Press, 2004.

DAVIES, William. Estados Nervosos: Como as emoções tomaram o lugar da racionalidade no debate público. São Paulo: Todavia, 2021.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LESSIG, Lawrence. Code and Other Laws of Cyberspace. Nova York: Basic Books, 1999.

POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. São Paulo: Itatiaia, 1987.

TUFEKCI, Zeynep. Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. New Haven: Yale University Press, 2017.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.610/2019. Dispõe sobre propaganda eleitoral, utilização e geração do horário gratuito e condutas ilícitas em campanha eleitoral. Disponível em: https://www.tse.jus.br. Acesso em: 17 maio 2025.

TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Resolução nº 23.732/2024. Altera a Resolução TSE nº 23.610/2019. Disponível em: https://www.tse.jus.br. Acesso em: 17 maio 2025.